quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Hombridade.

Victor Marques.

As brigas de bar eram comuns para Flávio, ninguém podia olhar pisar em seu pé, olhar muito tempo para ele, apressá-lo enquanto usava o banheiro, atrapalhar seu jogo de bilhar ou etc. Geralmente jogava sozinho, a derrota era motivo para arrumar briga.
Chegou ao bar que sempre freqüentava, onde até o dono tinha medo dele, por isso não o expulsava. Ao entrar, todos mudavam de feição, exceto os bêbados que perderam as características de seres humanos.
-Alguém quer jogar- Disse Flávio com o taco de bilhar na mão.
Por uns instantes o bar ficou em silêncio, mas um freqüentador casual aceitou a partida, não conhecia a fama de seu adversário, simplesmente achou que era um excelente jogador.
-E quanto vale a partida? Quem perder paga a conta, o que acha? – Perguntou o jovem.
-Claro, tragam um uísque para cá.
Tomou de um trago e deu a primeira tacada, sem nem perguntar se poderia começar, uma péssima tacada.
-Nem perguntou se podia começar... mas pelo jeito vai ser fácil.
-Vá se foder.
-Calma cara, é só um jogo.
Ao terminar a frase sentiu a ponta do taco em suas costelas.
-Viemos aqui pra jogar ou pra conversar?
Uma jogada excelente fez com que Flávio ficasse irritado, abriu alguns botões da camisa para que vissem todas as cicatrizes que se orgulhava de carregar no peito, logo em seguida, uma jogada péssima.
Aquilo consumia Flávio, perder não era uma opção, era preferível jogar sozinho, mas queria ver até aquilo iria, esperou e viu outra boa jogada, muito acima de sua capacidade. Pediu outro uísque.
-Pode jogar, já abri grande vantagem sobre você mesmo...
Aquilo sim o deixou irritado, segurou o taco com as duas mão e acertou no meio da cabeça de seu adversário, fazendo com que caísse de cara no pano verde da mesa, pedaços de madeira se espalharam pelo chão do bar, mas aquilo não era o suficiente, bateu mais uma vez com o pedaço de taco que ainda estava em sua mão, dessa vez, o feltro ficou com uma mancha vermelha e o sangue escorreu para a caçapa do meio.
-Viram que filho da puta, sabia que a mesa estava torta e estava se vangloriando – Esperou com que o jogador se levantasse da mesa – Viu, você é um ladrão do caralho, sabia que a mesa estava torta!
-Mas eu não acertei nenhuma bola nessa caçapa.
-Então você quer discutir! É machão! – Atirou-lhe uma bola que acertou em seu nariz e o derrubou na hora.
Foi até o corpo que parecia mais uma massa amorfa do que uma pessoa, o sangue escorria de seu nariz e no chão alguns dentes boiavam na poça de sangue ao lado. Flávio foi até o balcão, jogou uma nota de dez para pagar tudo o que havia consumido e antes de sair, jogou uma ponta de cigarro em um dos machucados do homem que acabara de espancar, cujo nome não se dera ao trabalho de perguntar.
-Para mim, você vale menos que uma bituca de cigarro.
Os observadores não se manifestaram, os que não estavam acostumados com aquilo ficaram chocados demais.
Saiu pela rua escura e caminhou até sua casa, tirou a camisa e foi até a cozinha, abriu uma cerveja e tomou rapidamente, fumou um cigarro e subiu a escada que dava para seu quarto.
Na cama, sua mulher lia uma revista de fofocas.
-Não ta com sono, amor?
-Cala a boca, seu bêbado.
-Desculpa... Espere, o que é isso aqui – Puxou uma cueca que sabia que não era sua que estava ao lado do criado mudo.
-É sua, parece trouxa.
-Não, eu tenho certeza que não é minha – Disse em tom sereno.
-E se não for, vai fazer o que? O mesmo que faz com seus amigos de bar?
-É, talvez seja minha mesmo.
-Tá vendo, idiota, não enche o meu saco, quero ler.
Flávio se virou de costas para a mulher, acendeu um cigarro e chorou.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Vida de mortos.

Victor Marques.


Wanderlei estava sentado no sofá, não sabia que horas eram, nem o dia da semana, nem o mês. Sentado no sofá lembrando de como foi genial nos seus estudos, sempre o melhor, o mais rápido, mais inteligente, mais estudioso. Ainda tinha tempo para as mulheres, sempre praticara esportes, saíra com todas as mulheres que quis, o único de sua turma que, aos dezoito anos, ganhou um carro, bolsas de estudos ao terminar o colégio. Uma vida perfeita.
Agora estava estirado sobre um sofá podre, devendo incontáveis meses de aluguel, sozinho, contando moedas para comprar o cigarro de cada dia. Há dias não comia nada digno, até os ratos e baratas abandonavam aquele lar, que, apesar de lar não era doce, e sim, amaríssimo. As manchas de infiltração passaram do teto às paredes, tocando o chão. Os móveis e roupas só não fediam tanto quanto o dono porque foram vendidos a antiquários e brechós nos momentos de desespero.
Estender a mão em busca de uma moeda era humilhante demais para um gênio, um poliglota não precisava pedir esmolas, não se viam mendigos formados em universidades européias, e afinal, para Wanderlei, ainda havia saída.
Levantou-se com um cigarro entre os dedos amarelados, colocou-o entre os poucos dentes que restavam em sua boca, procurou uma caixa de fósforos atrás do sofá, entre os tacos apodrecidos, atrás da privada.Não, em algum lugar acharia um mísero fósforo. Começou a observar os transeuntes do seu lúgubre porão que chamava de casa. Era fim de tarde, por sorte uma guimba rolou para próximo de sua janela, ao pegá-la, se queimou e a deixou cair, uma luta até conseguir acender um mísero cigarro.
Esperou ficar escuro para ir até a casa do zelador do prédio para lhe pedir uma caixa de fósforos emprestada. Fazia tempo que não saía daquele lugar, quando o fez, só desejou voltar o mais rápido possível.
Ao tocar a campainha, foi atendido por uma menina de quinze anos. Ficou atônito, havia esquecido de como eram as mulheres, para ele, só existiam homens e ratos. Pediu uma caixa de fósforos e saiu rapidamente dali, como se fugisse da pobre menina.
Voltou para o sofá, acendeu uma vela, viu que as únicas coisas que restavam para ele, além da fome, era aquele sofá podre e um espelho antigo que não conseguira vender, roupas velhas espalhadas pelo chão e caixas de fósforo vazias.
Por um momento experimentou uma coisa que não sabia o que era há muito tempo, sentimentos. Sentiu ódio de si, depois pena. Havia esquecido como era o sexo, de uma refeição com mais uma pessoa, não sabia mais como era viver em sociedade, todo seu universo estava reduzido ao porão.
A imagem da filha do zelador não saía de sua cabeça, perturbava-o. Lembrou de algumas de suas namoradas, dos seus amigos, de sua família. Percebeu que todos estavam mortos. Todos estavam vivos, ele sim estava morto.
Rasgou alguns trapos e fez uma corda para se enforcar, mas se sentiu tão impotente, não tinha nenhuma cadeira para subir e pendurar a corda no teto. Até para a morte parecia incapaz.
Deixou sua forca dependurada no braço do sofá e dormiu. Sonhos? Wanderlei não sabia o que eram sonhos há anos, seu sono conturbado resumia-se à modorra.
Acordou depois de horas mal dormidas e permaneceu no sofá, passou a mão pelo seu corpo e notou que sua barba chegava ao peito, os raros fios de cabelos estavam enormes, quando tocou seu sexo, lembrou da filha do zelador.
Os dias, ou as unidades de tempo que pareciam dias, foram se arrastando, até que os fósforos acabaram de novo, juntamente com os cigarros. Precisava falar com o zelador novamente, porém, temia encontrar a menina.
Quando olhou pela janela e não viu mais claridade alguma, deixou o sofá e foi à casa do zelador. O homem atendeu com um maço de cigarros e a caixa de fósforos.
-Será que você poderia me emprestar uma cadeira?
-Claro que não, sente-se no sofá.
Aquelas palavras irritaram profundamente aquele homem. Homem? Será que um ser isolado da convivência, um indigente que morava num porão imundo, alguém que todos já davam por morto, poderia ser considerado um homem?
Acendeu um cigarro e lembrou que há dias não comia, estava a base de uma água escura que saía da torneira localizada do lado de fora do seu mundinho.
Sentiu raiva do zelador, aquele filho da puta poderia ter emprestado uma cadeira para que morresse dignamente. Um ódio animal o possuiu, era exatamente o que era, um animal.
No dia seguinte, durante a noite, foi até a casa do maldito lhe pedir uma faca. Caso ele não emprestasse, ele sairia à rua e se atiraria na frente do primeiro ônibus que passasse.
Infelizmente ele não estava, sua filha o atendeu, sentiu vergonha e saiu correndo. Ao entrar no vestíbulo, destruiu o espelho com um soco, muniu-se de um pedaço e resolveu fazer uma visita para a menina.
-Você vem comigo –disse Wanderlei encostando a ponta do caco no pescoço dela. –E traga uma cadeira.
Ao chegar no porão, a forca foi pendurada em uma haste de ferro que pendia do teto. Mas ainda era cedo para a morte. Antes disso, pretendia relembrar de como era o amor. O fez entre gritos e lágrimas. Quando os lamentos da garota começaram a perturbar, o enorme pedaço de espelho foi enterrado na sua garganta. Agora sim, um amor silencioso e frio.
Pensou em enforcá-la junto com ele, mas os panos podres não agüentariam. Ela que dormisse um pouco no sofá. Subiu na cadeira, acertou o nó em seu pescoço e saltou. Sua forca arrebentou, realmente, era incapaz até de se matar.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Ana e eu - Solidão.

Victor Marques.


Uma semana longe de Ana, nada mal. Meus cigarros duravam mais, a cerveja na geladeira parecia não acabar nunca, sempre sobrava comida para o dia seguinte, não precisava me preocupar com a louça na pia e nem com a roupa suja espalhada pelo chão do quarto, os cinzeiros voltavam a transbordar e eu nunca mais lavei a cabeça com sabonete íntimo.
Em compensação, me flagrei abaixando a tampa da privada depois que usava, fazendo o dobro de café, nos dias que saía mais cedo, pensava em bilhetes para deixar na mesa para que ela lesse, mas ela não existia mais.
As semanas foram passando, se tornaram meses, e eu ainda pensava nela. Nesse tempo, consegui marcar um encontro com a minha aluna particular que queria prestar física. Era muito gostosa, se chamava Valentina. Um dia me convidou para passar a noite em sua casa, “estudando”, era bem inteligente, apesar de sua cultura ser nula. Foi muito gentil, alugou alguns filmes, comprou quatro garrafas de cerveja importada, preparou uma boa janta e se vestiu de uma maneira que nem o mais veado dos homens negaria sexo.
Começamos a assistir um filme péssimo. Eu ainda pensava em Ana, mas resolvi atacar Valentina para não prestar atenção ao filme. Os créditos começaram a subir quando trocamos a sala pelo quarto. Ela já havia pensado em tudo, velas espalhadas, pétalas de rosa na cama, incensos e todos os outros apetrechos imaginável que faziam de tudo aquilo uma foda muito cafona.
Prosseguimos com tudo aquilo, o que mais parecia um favor, fazia sexo pensando em Ana, tinha de me controlar para não fazer confusão com os nomes. Não foi de todo o mal, talvez até melhor do que estava habituado, mas não queria aquilo.
Quando acabamos, me virei para alcançar um cigarro no bolso da calça, quando acendi ela disse:
-Se quiser fumar é lá fora! –Num tom de reprovação.
-Dá um tempo, acabamos de trepar, me deixe um cigarro aqui.
-Então quer dizer que estávamos trepando?
-Bom, rezando é que não estávamos.
-É assim que você chama, trepar? Então quer dizer que nos rebaixamos a animais?
-Se pensarmos em sexo com algo instintivo, sim, nos rebaixamos a animais.
-Some daqui, cachorro.
-Tudo bem, não precisa ficar irritada.
Coloquei minha roupa e sai o mais rápido possível. Na rua pensei “E pensar que tudo isso foi culpa dela, se deixasse eu fumar na cama, nada disso aconteceria.” Já era tarde, e eu estava no centro da cidade, caminhei apressadamente até o metrô, já estava fechado. Provavelmente não voltaria de ônibus para casa também. Abri a carteira, tinha um dinheiro considerável das aulas que Valentina tinha pagado.
Nessas horas a solução é escolher um bar e ficar lá até o metrô voltar a funcionar. Sendo esse o caso, Por que não fazer uma visita à Ana? Ela deveria estar saindo do trabalho agora. Talvez me arrumasse bebidas mais baratas.
Caminhei até o bar e olhei pela janela, lá estava ela. Servia uma mesa de homens engravatados acompanhados de meninas trinta anos mais novas. Não me viu. Cheguei ao estacionamento e comecei a conversar com o manobrista.
-E ai cara, como vai?
-Bem, o senhor está de carro?
-Não, queria perguntar uma coisa para você.
-Pois então diga.
-Tem a chave do carro de Ana aí?
-Tenho sim.
-Dou dez paus pra você abrir o carro dela pra mim.
-Não posso...
-Tudo bem, vinte.
-Fechado!
Fomos até o carro dela, ele abriu e logo me cobrou os vinte reais. Entreguei para ele, só o cheiro dela que estava impregnado no carro já valia cada centavo, resolvi deixar um bilhete para ela, já que não teria coragem de entrar lá.
“Ana, sinto sua falta, quando faço sexo, só consigo pensar em você. Victor.”
Saí de lá o mais rápido possível e encostei num bar que ficava do outro lado da rua, só para vê-la sair do trabalho. Fiquei lá cerca de quatro horas bebendo ininterruptamente, ansioso. De repente, peguei no sono ali mesmo, o que foi o suficiente para ela sair do trabalho sem que a pudesse ver.
Voltei ao manobrista.
-Cara, que horas são?
-Cinco e meia.
-Você sabe quando é a folga de Ana?
-Hoje.
-Obrigado.
Saí de lá e fui correndo até a estação de metrô. Dormi no metrô, fui e voltei várias vezes para o mesmo lugar. Um segurança me acordou, já era a terceira vez que me via voltar para a estação em que ele trabalhava. Fui caminhando até minha casa. Quando cheguei encontrei algumas guimbas pisadas ao lado da porta, pensei nela.
Quando entrei, havia um papel que haviam passado por debaixo da porta.
“Você é um grande filho da puta, também sinto sua falta, mas não vou voltar. Ana”.
Aquilo me deixou revoltado, mas a mancha de cerveja na parede me fazia lembrar que eu realmente era um grande filho da puta.
Passei o domingo no quarto, sem pensar em nada, nem em mim, nem em Ana. Quando estava quase dormindo, a campainha toca, resolvo não atender, provavelmente era algum vendedor de bíblia ou algum testemunha de Jeová.
Seja lá quem fosse, insistiu muito para que eu atendesse a porta. Mas não tive coragem de me levantar. A campainha foi substituída por um grito.
-Definitivamente você é um grande filho da puta!
Levantei correndo e fui até a porta. Quando abri, um carro saía cantando pneus, era o carro de Ana, eu sentei na calçada e observei-a partir. Não despregava meus olhos da fumaça que saía do escapamento. É, ela não voltaria mesmo, se eu tinha alguma chance, ela acabou de partir cantando pneus.
Ouço um barulho ensurdecedor na esquina de casa, entro. A desgraça dos outros pouco me importa. Procuro um cigarro e só encontro maços vazios, procuro no meio da roupa suja uma camiseta apresentável para ir até a padaria.
No caminho vejo um carro abraçado ao poste. Sim, o carro de Ana. Pergunto ao dono da padaria o que aconteceu.
“Uma maluca saiu correndo e arrebentou o carro no poste, saiu voando pelo pára-brisa, uma maluca a menos no trânsito e você, quer o que?”.
-Um camel.


terça-feira, 3 de novembro de 2009

Passeio


♦ Rafael S.M.F.

Desci a Oscar Freire de cabeça baixa, mas ainda conseguia ver algumas pessoas por lá me lançando aquele olhar de desdém. Provavelmente não gostaram da minha roupa velha e amassada, estavam acostumadas apenas a se arrumar com peças que custavam mais do que eu consigo gastar em um ano.
Segui em frente e parei no primeiro bar que encontrei, pedi uma cerveja pra tentar descansar um pouco Estava tudo bem até aparecer um garoto de boina e com uma jaqueta de couro bem velha, consegui observar um grande ‘A’ costurado em sua manga. Merda, mais um moleque metido a revoltado querendo arrumar o que fazer.
Mas será que eu também não sou?

“ E ae mano, você curte o que ?” – Ele me perguntou.

Por algum motivo chamei atenção atenção dele. Não sei porque, nunca fui do tipo que usa roupas cheias de simbolismos ideológicos, nunca tive muita opção. Acho que se você tem uma opinião, deve simplesmente dizer, não usar um desenho que só o seu grupinho entende para demonstrar isso. Ignorei e continuei bebendo.
Cutucou meu ombro e perguntou mais alto.

“Hein mano, CÊ CURTE O QUÊ?”

Se não tivesse um tom tão arrogante, talvez tivesse conversado com ele. Dei a ultima golada do copo, paguei o atendente e respondi.

“Curto cerveja”

Me virei e fui embora, ele não me seguiu, provavelmente devia ser mais interessante incomodar outra pessoa. Virei a esquina e comprei uma lata de cerveja em outro bar,
com o que restava do meu dinheiro. Assim que saí me deparei com um ser enorme , todo colorido.

“E ae gatão, vamos dar uma volta ?”

Travestis são comuns por ali naquela hora da noite. Desviei sem olhar e ignorei.
Virei e saí em uma rua que eu não conhecia, haviam vários restaurantes caros por lá. As pessoas que andavam por ali não me olhavam com desdém, simplesmente não olhavam. Me senti invisível, mas isso não era ruim...
Continuei andando e me deparei com um mendigo muito velho. Estava mexendo nos lixos amontoados ao lado dos restaurante e me olhou nos olhos quando passei por ele. Me senti estranho, percebi que raramente me olhavam direto nos olhos. Parecia que eu conseguia ver a dor na alma daquele homem, olhando nos olhos dele.
Ou talvez fosse na minha alma, não sei.
Passei direto. Alguns garotos de rua começaram a aparecer, a maioria devia ter menos de 12 anos. Estavam completamente chapados, cada um com um saquinho plástico cheio de cola.

“Me arruma um real tio?”
“Não tenho...”

Não ia dar dinheiro para eles comprarem mais cola, ou sei lá o que eles usavam além disso. Bem, eu estava com uma lata de cerveja e isso não me faz muito melhor que eles, mas se eu fosse gastar meu dinheiro com drogas, que fosse pra mim mesmo.
Não é bom ser egoísta quando se trata de se matar?
Continuei andando e cheguei no metrô. Pior hora do dia. Dezenas de rostos vazios, tristes, ostentando suas vidas mutiladas. Todos odiando profundamente o fato de estar ali dentro, eu me incluía em tudo isso, obviamente. Todas aquelas pessoas amontoadas, desperdiçando suas vidas em empregos que odeiam, presas no ciclo “dívida – trabalho – salário”, uma vez preso a isso, você é o escravo perfeito, e nem percebe.
Descendo daquele metrô ainda tinha que pegar um ônibus, a mesma história. Todos pareciam bois indo para o abate, ou depois do abate, talvez.
Desci do ônibus e fui pra casa, finalmente, ninguém pra me olhar ou julgar, ninguém para EU olhar e julgar, humanos são mesmo uma desgraça, e eu faço parte disso.
Ficar afastado de todos causa uma falsa sensação de conforto, por um momento posso me sentir fora desse ciclo hediondo que se passa lá fora. Fiquei deitado na cama olhando teto, pensando na minha vida.
Estava sozinho, apenas com meus pensamentos e minhas lembranças e, no entanto,
não gostei do que vi.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Ana e eu - Divórcio.

Victor Marques.

Após um mês de convivência eu percebi que a tampa da privada sempre estava abaixada, as cervejas estavam acabando mais rápido do que o previsto, eu não via mais ninguém além de Ana, estava pagando o preço do “casamento”.

Um dia vi que esse preço era alto demais. Aquela foi a gota d´água, não ficava tão possesso desde que um mendigo cagou na porta de casa. Um maço de cigarros meu havia desaparecido, aquilo sim era revoltante! Precisava ter uma conversa séria com Ana.

Aquela era a sexta feira que marcava um mês de nossa vida conjugal. O dia se arrastou, não via a hora de ela chegar em casa para que tivéssemos uma briga homérica. Sim, eu realmente desejava brigar. Não consegui pensar em outra coisa, nem em minhas aulas conseguia me concentrar, me peguei dando um exercício que a frase a ser analisada era “Ana roubou meu maço de cigarros.” O mais estranho foi que dei essa frase para uma criança de nove anos de idade.

Cheguei em casa mais tarde do que o habitual, fui dar umas aulas de redação para uma mulher de trinta e cinco anos que ia prestar vestibular para física. Ela era muito gostosa, o que só fui descobrir na segunda aula, naquela sexta feira só conseguia pensar no meu maço de cigarros extraviado.

Estava atordoado, sentei-me na cozinha, abri um litro de uísque que estava guardando para uma ocasião especial. Tomei um quarto da garrafa em menos de uma hora. Ela tocou a campainha, estava acompanhada de uma amiga que eu nem notei.

-Você pegou um maço de cigarros que era meu!

-Peguei... Por quê?

-Era meu, porra, você que compre os seus.

-Foi só um maço de cigarros.

-Foi um maço de cigarros hoje, amanhã será outro, depois outro! Não sabia que você me ajudava a pagar pelos cigarros também.

-Filho de uma puta, quando vim morar aqui, isso parecia um chiqueiro, devia de me agradecer por não viver mais como um porco.

-Você que deveria me agradecer, a merda da casa é minha, você não tinha nem merda para tirar do seu cu quando veio morar aqui!

-Vai jogar na minha cara?

Só aí que notei a amiga dela estava sentada no sofá assistindo a tudo aquilo de camarote, horrorizada. Ela não conseguia piscar. Tinha uns vinte e cinco anos e parecia nunca ter visto homem nenhum naquele estado de cólera, ainda mais por um maço de cigarros.

-Boa noite pra você, se quiser, tem cerveja na geladeira. –Disse para a amiga dela.

-Aproveite e pegue uma para mim.

Ela foi e eu continuei a briga com Ana.

-É o maço de cigarros, a tampa da privada, toda aquela quinquilharia no meu banheiro, as suas calcinhas no box, todas essas coisas me irritam, mas que porra!

-Você é um grande filho da puta!

-Pois eu acho que é você. –Disse sarcasticamente.

A amiga retornou a sala com dois copos de cerveja bem cheios e me entregou um deles. Estava com o medo estampado na cara, mas esboçava uma risada amarela, tentando entender tudo aquilo.

-Me desculpe, nem perguntei seu nome?

-Carolina, mas pode me chamar de Carol.

-Ah sim, me chamo Victor, mas por me chamar de Agnaldo.

Era visível a minha irritação, voltei-me à Ana, que estava com o rosto vermelho de ódio.

-Ela é minha irmã, ela veio aqui para conhecer você.

-Pau no cu dela! Ela que viesse num momento melhor.

-Agora chega!

-Eu que o diga. CHEGA. –Atirei o copo na parede, coisas que aprendi com uns amigos meus

Não se falou mais nada durante alguns instantes, até que ela tirou o maço da bolsa e jogou no meu colo.

-Pode ficar, para você se lembrar dos nossos últimos momentos juntos. –Devolvi o maço a ela.

-Então acabou?

-Creio que sim, pelo menos por enquanto.

Fui até a cozinha tomar uma cerveja, ela foi ao quarto arrumar suas coisas, disse que depois passaria para pegar o resto, eu insisti para que levasse tudo de uma vez.

E lá se foram as duas, cantando pneus pela rua, como se tivessem pressa de sair depressa dali.

Fui até a calçada e achei o maço de cigarros no chão, amassado pelos pneus do carro.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Sinuca de bico

♠ Rodrigo Bersogli

- Ei, Marcão... É sua vez!

Bola seis, caçapa do meio.

- Pois é, Edinho... Como eu ia dizendo, as coisas não andam bem lá em casa. Nem um pouco, cara. Tá foda.

Bola onze, caçapa da ponta.

- Mas então, bicho... O que é que tá pegando? O que tá rolando na sua casa, rapaz?

Bola quatro, ficou na boca. Aproveitou e puxou um cigarro.

- As coisas estão enroladas por lá, cara. Tô que nem quero aparecer de cara limpa hoje, para não fazer merda.

Bola sete, direto na caçapa do canto. Deu uma golada na cerveja.

- Ih, cara... Mas diz aí, qual é o galho? Tu tá com uma cara péssima...

Bola dois grudou na lateral da mesa. Encheu o copo de cerveja rápido, deixando colarinho.

- É a Rosana, Edinho. É a Rosana...

Bola cinco tirou a quatro da boca. Acabou com a cerveja numa longa golada e acendeu um cigarro vagabundo.

- Porra cara, a Rosana? Mas o que é que ela tem, chapa? Tá mal?

Bola quatro empurrou a cinco mas não ficou nem perto da caçapa. Tragada forte no cigarro, outro copo de cerveja cheio de espuma.

- A sacana tá me passando pra trás, bicho. Tô levando bola nas costas.

Paulada na bola cinco, direto na boca. O barulho fez ambos olharem para a mesa, e Edinho encheu o copo de Marcão, depois de apagar a bituca que acabara de jogar no chão com a sola do sapato.

- Cara... Meu, vamos com calma. O que você tá falando é muito sério, Marcão. Eu não a conheço, mas pelo que você sempre fala a Rosana não parece ser mulher disso. E o que te faz achar uma coisa dessas?

Quatro de volta na boca, que agora estava livre.

- Sei não, Edinho... Sei não. Tô com um pé atrás com ela há um tempo, mas agora eu tô ainda mais encucado. Pra você ver... Você sabe que eu jogo bola de quinta-feira, não é? Pois então. Toda quinta quando eu chego de quadra, a Rosana tá deitada. Mas não tem banho no mundo que tire o cheiro do perfume dela, eu conheço bem aquele cheirinho, nego. Ah, se conheço! E ela tá sempre acabada, morta de sono... Agora, vê se não tenho razão: Se ela não saiu de casa, como pode estar com o cheiro, mesmo que de leve, do maldito perfume?

Bola três empurra a dois pra lateral. Outro cigaro é aceso, outra cerveja é aberta.

- Ah cara... É, isso é complicado mesmo... Mas sei lá, de repente ela aproveita que você não tá lá cedo na quinta para fazer algo para ela, oras... E outra, tu não bebe quando sai da quadra? Vai ver ela tá como sempre, mas você fica encanado por causa do gole... Além do mais, porque só agora você tá preocupado com isso? Sei que você joga seu futebolzinho faz tempo...

Edinho tenta derrubar a quatro, mas erra. Acende outro cigarro e pede um conhaque, oferecendo imediatamente para Marcão, que vira numa golada só fazendo uma bizarra careta:

- Valeu, cara. Desculpe te encher com esse história, mas precisava conversar com alguém e você é o único lá da firma que eu posso bater esse tipo de papo.

Bola treze passa longe da caçapa. Com uma nota de um real, Marcão coloca 'Azul da Cor do Mar' de Tim Maia e 'I Just Can't Stop Loving You', de Michael Jackson na hipnótica jukebox, com suas luzinhas e pisca-piscas.

- Relaxa, somos camaradas... Estamos aí pra isso. Mas diz pra mim, o que te levou a pensar nisso agora?

Finalmente, bola quatro cai na caçada do canto. Edinho pede mais dois conhaques e outra cerveja.

- Então, cara... A Rosana sempre foi carinhosa comigo, mas do jeito dela. Sabe como é, né? Faz charme mas, no fundo, gosta de me agradar. O problema agora é que ela tá estranha comigo todo dia, meio fria, sei lá... Mas às quintas pela manhã, justo às quintas, ela fica um amor. Um doce, como se estivesse de consciência pesada, não sei. Mas é só passar a quinta e volta tudo ao normal, bicho.

Bola três para no meio da mesa, depois de uma tabela mal sucedida. Marcão e Edinho viram seus respectivos conhaques e enchem os copos com cerveja.

- Porra, cara. Não acho que isso seja motivo... Toda mulher tem suas fases, suas frescuras. Às vezes ela tá puta com alguma coisa, ou preocupada, ou mesmo cansada... Mulher é foda, você sabe.

Bola dois fica na boca do canto. Edinho faz Marcão virar o conhaque, mas toma o seu devagar, alternando com a cerveja.

- Sim, eu sei... Mas tem mais uma coisa, cara. Eu achei isto atrás do criado-mudo.

Então, Marcão exibe um isqueiro azul, pequeno. Bic. Pede outro conhaque, dessa vez com limão. Vira de uma vez, mais rápido e mais leve que os outros, e acende outro cigarro com extrema velocidade.

- Ué, mas o que tem demais? É só um isqueiro, cara. Eu mesmo já achei tantos em casa...

- Malandro, acorda: A Rosana não fuma. Só EU fumo em casa, e nunca tive ESSE isqueiro! Tá entendendo o que eu tô dizendo? Essa porra não é minha!

Vendo que Marcão estava visivelmente alterado e nervoso, Edinho pediu outro conhaque para ele. À essa altura, o bar já estava quase vazio, e os bêbados que permaneciam por lá pareciam parte da pitoresca decoração. Talvez alguns estivessem sentados lá, naquelas mesmos esquálidos banquinhos, desde antes do bar existir, porém não sabiam. E muito provavelmente continuariam lá, velando e serrando o gole alheio mesmo depois do bar falir. Eram como o balcão, as garrafas, as mesas de sinuca: Patrimônio do local, e eram tão impassíveis quantos os referidos móveis. O que os diferenciava da jukebox eram as luzes, a capacidade musical e o fato da jukebox ter mais moedas dentro dela naquele momento do que a maioria daqueles zumbis funcionais tiveram em toda a sua pseudo-vida.

Edinho tomou seu copo de cerveja, já nem tão gelado quanto antes.

- Marcão, Marcão... Vamos com calma, cara. Será que nenhuma amiga dela deu uma passada por lá e esqueceu?

Bola dois, caçapa do canto. Na sequência, doze cai no meio. Outra cerveja para ele, outro conhaque para Marcão, outros cigarros para ambos.

- Amiga é o caralho, porra! Eu tô levando galho, eu sei. Tô falando, cara. E vou te falar uma coisa: Eu mato aquela ingrata filha da puta! Tá me entendendo? Eu mato!

Virou o conhaque como se fosse cerveja. Empurrou a quinze para o outro lado da mesa, mas não derrubou nada, nem defendeu. Mais um real na jukebox, agora para tocar 'Carolina' de Jorge Ben Jor e 'How deep is your love?', do Bee Gees.

- Calma, cara! Assim você só piora as coisas. Tem é que ter certeza da situação antes de mais nada. Porque você não falta ao futebol na quinta e fica à espreita, de tocaia, para ver o que é que tá acontecendo de verdade? É melhor do que tomar uma atitude precipitada, cara. Se precisar, eu fico contigo nessa arapuca, a gente vê que merda dá.

Bola oito cai lenta e caprichosamente no canto. Edinho oferece uma vodka ao amigo, que toma sem pestanejar nem questionar, já trôpego e ofegante.

- Porra, Edinho! Tá falando sério, cara? Tu faria isso comigo? Hic!

Marcão tenta acertar a bola treze, sem sucesso. Mal consegue permanecer em pé sem cambalear.

- Calma, Marcão! É claro que eu fico ao teu lado nessa, cara. Mas acho que por hoje já deu, hein? Você já tá no grau, amigo. Eu vou dar uma mijada; me espera aí para irmos embora. Tá tarde e você já bebeu demais por uma noite, chapa. Tenta ficar aí na cadeira sem cair até eu voltar, hein?

Marcão mexeu a cabeça positivamente, porém sem muita coordenação. Edinho foi ao banheiro e, em frente ao mictório, se sentiu aliviado em todos os sentidos. Ao virar para trás, logo após fechar o zíper, se deparou com Marcão na porta do banheiro. Exalava álcool por todos os poros e tinha os olhos vermelhos, marejados. Fitou o ambiente com uma calma gélida para um homem em sua situação e foi desenfreadamente em direção ao amigo, dando-lhe um pesado e forte abraço. Edinho ainda tentou balbuciar que era melhor já irem embora, mas não conseguiu terminar a frase porque Marcão o interrompou, com os lábios colados em sua orelha:

- Eu sei que foi você, filho da puta.

Ao terminar essas palavras, ditas quase como sussuros, Edinho sentiu a lâmina penetrando suas entranhas uma, duas, três vezes. Não soube precisar se houveram novas investidas, pois a partir daí, não sentiu mais nada. Sua única reação foi estender a mão em direção à Marcão, numa vã tentativa de reaver seu isqueiro perdido.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Ana e eu – Vida conjugal

Victor Marques.


Sinceramente não entendia porque ela havia voltado, nem eu, que era o dono da casa achava o ambiente muito agradável. Mas pensando pelo lado otimista, talvez fosse bom partilhar meu tempo livre com uma mulher, Ana era uma boa mulher.

Quando abri a porta para ela entrar com aquela mala de roupas, fiquei embasbacado, não consegui pronunciar palavra alguma, apenas a ouvi dizendo:

-Faça o favor de ajudar a tirar as coisas do carro, acha que a minha mudança é só uma mala de roupas?

-Ah sim, pode deixar.

Quando abri o porta-malas fiquei chocado da quantidade de coisas que estavam ali, metodicamente dispostas. Uma televisão pequena, um rádio portátil, utensílios domésticos, um pouco de comida, uma coleção de garrafas de cerveja vazias, roupas, uma arara desmontada... Parecia que pretendia ficar um tempo por aqui.

Fiz cerca de cinco viagens para tirar tudo do carro. Quando entrei na sala, ela estava sentada no sofá, sua cara não era das melhores. Resolvi perguntar porque resolvera mudar para a minha casa, quanto tempo gostaria de ficar, se ajudaria nas despesas domésticas e etc.

-Olha...

Ela me interrompeu num choro convulsivo, fora expulsa da casa de sua avó, não tinha a quem recorrer e pensou em mim. Depois de ouvir tudo aquilo, fui incapaz de perguntar qualquer coisa, minha única reação foi lhe oferecer uma cerveja.

A única coisa que consegui perguntar foi se ela gostaria que eu dormisse na sala, a idéia não foi muito bem vista, dividimos a cama num sono profundo, sabendo que uma manhã de segunda feira nos aguardava.

Acordei por volta de dez horas, ela já estava acordada, fazendo o nosso café da manhã. Quando me sentei à mesa, ela estava refeita, estava com uma cara ótima, acho que foi porque não restringi sua estada em minha casa. Achei que o momento era bom para perguntas.

-Então... Quanto tempo pretende ficar?

-Não sei, mas se você quiser que eu saia, por mim tudo bem.

-Pode ficar, gosto de você.

-Ótimo, pretendo ajudar nas despesas da casa também.

-Isso é bom, não posso sustentar mais um aqui.

Ela acabou de tomar seu café e foi tomar um banho, precisava sair para trabalhar. Não se demorou muito e quando saiu do banheiro, estava muito bonita, de uma maneira que nunca havia observado.

Despedimo-nos com beijinhos de bom dia e ela se foi em seu carro para o bar onde trabalhava. Resolvi tomar um banho também. Quando entrei no banheiro, quase caí, havia um arsenal de xampus, condicionadores e maquiagem. Precisava aprender a conviver com tudo aquilo.

O dia passou rapidamente, dei duas aulas particulares depois do almoço, parei em uma padaria para tomar uma cerveja no fim da tarde, comprei uma edição de bolso de ‘A Peste’ e rumei de volta para casa.

Por um instante esqueci que tinha uma nova hóspede e me pus de cueca na sala para assistir um pouco de televisão e tomar uma cerveja. Relaxei a tal ponto que adormeci ali mesmo por uns instantes, até que a campainha me acordou, era ela.

-Você poderia me providenciar uma chave, já que estou dividindo a casa com você.

-Não sei, nunca chego depois de você.

-É, assim não me preocupo em perder a chave.

-É, pegue uma cerveja na geladeira se quiser.

-Claro, meu amor.

-Amor?

-Por que não?

-É, por que não?

Precisava me acostumar com aquilo também.

Bebemos uma cerveja, trocamos perguntas cotidianas, e as duas da manhã ela resolveu dormir.

-Vá lá, vou ler um pouco.

-Tudo bem, te espero na cama.

Li até três horas da manhã e fui para o quarto, quando entrei, ela ainda estava acordada, estava me esperando.

-Queria te dar um beijo de boa noite –ela disse.

-Tudo bem, boa noite.

Naquela noite eu não pretendia dormir muito tarde, mas quando me dei conta, estávamos envolvidos em uma foda louca que durou até as seis da manhã do dia seguinte, quando o sol começou a nos espiar trepando.

Depois de dormir algumas poucas horas, fui acordado pelo som do rádio, fiquei com raiva, mas pelo menos era uma música que me agradava. Fui à cozinha e lá estava ela, de calcinha e camiseta preparando alguma coisa para o almoço.

-Bom dia, amor.

-Bom dia.

-Carne ou frango?

-Carne.

Ao fim de uma semana parecíamos casados. Casados... Isso definitivamente me assustava! Como poderia levar uma vida conjugal sem reclamar, sem ver problema nenhuma naquilo?

Fui levando aquilo tudo numa boa, não recebia mais amigos para casa, não fumava mais na cama, não lia até três horas da manhã. Estava me adaptando a vida a dois.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Eles Estão Enganando Você

♦ Rafael S.M.F.

Eu não estava me sentindo muito bem, provavelmente por que meu remédio tinha acabado. Eles sempre acabam muito rápido quando caem no ralo. Eu precisava sair e comprar mais, mas estava chovendo muito e, depois que eu assisti o Mágico de Oz, passei a ter medo de me molhar e derreter, assim como aquela bruxa verde. Coitada.
Fiquei na janela observando as pessoas na rua. Acho que elas também tinham medo de derreter, pois corriam muito para não se molhar. Especialmente as mulheres, parecia que elas tinham muito medo que o cabelo - ou até mesmo a cabeça inteira - desmanchasse na água.

Estava lá, entretido com as pessoas, quando o telefone tocou fazendo aquele som estranho que parece um grilo espacial. Meu filho me comprou esse telefone há uns tempos atrás. É muito moderno, mas demorei apenas seis meses para aprender a ligar ele, apertando o botão.
Apertei.

– Alô?
– Boa tarde, com quem eu falo?
Era uma voz de mulher.
– Comigo – respondi – E eu estou falando com você.
– Bem, meu nome é Catarina, e sou do...
– Não conheço nenhuma Catarina, então você não me ligou, até logo.
Desliguei.

Fui até o banheiro fazer um lanche, mas a comida tinha acabado. Sentei no vaso e fiquei pensando no que fazer, quando o telefone tocou novamente.
Fui até a sala, peguei o telefone e apertei o botão.

– Alô?
– Boa tarde, com quem eu falo?
Era uma voz de homem.
– Comigo – respondi.
– Bem aqui é do Jornal Folha de São Paulo e consta no nosso sistema que o senhor Luiz não pagou as três ultimas prestações da assinatura, ele está?
– Eu não leio jornal, até logo.
Desliguei e sentei no sofá.

Peguei o jornal ao meu lado e comecei a ler. Não entendia nada daquilo, mas as fotos eram muito divertidas.

Então o telefone tocou novamente.
Fui até a cozinha e abri a geladeira, mas lembrei que o telefone estava na sala. Voltei e atendi.

– Alô?
– Oi pai, tudo bem?
– Oi Ricardo, como vai filho?
– Vou bem, e por aí?
– As coisas vão mal por aqui, acabou a comida e eu não posso sair na chuva se não vou derreter.
– Pai, o senhor não tomou seus remédios de novo?
– Não, eles acabaram quando joguei no ralo.
– Cacete pai! Vou aí levar pro senhor, até logo.
Desligou.

Naquele momento fiquei irritado por ser interrompido o tempo todo e tirei o telefone da tomada. Voltei a sentar no sofá e abri o jornal, mas – para meu espanto – o telefone voltou a tocar, mesmo com o fio desligado. Fui até ele e atendi.

– Não leia o jornal, eles estão enganando você – a voz disse.
– Obrigado por avisar – Respondi.
Desliguei.

Peguei o jornal, rasguei e joguei no lixo do banheiro. Fiquei pensando no que fazer e resolvi ligar a tv. Havia um casal estranho brigando, gritavam muito. Uma mulher ficava sentada no meio com um microfone olhando com cara de idiota, não consegui entender o que era aquilo. Então o telefone tocou novamente. Atendi.

– Eles também estão enganando estão você – A voz disse.
– Obrigado, de novo.
– Por nada – a voz respondeu.
Desliguei.

Peguei a TV, levantei até a altura da minha cabeça e a joguei no chão. Ela espatifou fazendo um barulho terrível.
Decidi fazer um café. Fui até a cozinha, liguei o fogão e coloquei a água no fogo, mas ele apagou. Achei melhor procurar uma chaleira, mas o telefone tocou novamente.
Eu já estava muito irritado e não quis ir até a sala, então peguei uma banana que estava em cima da mesa.

– Alô? – Eu disse.
– A morte vai te buscar hoje – a voz disse.
– Sério, sem nem avisar antes?
– Estou avisando agora.
– Obrigado pela atenção – Eu disse.

Então, a campainha tocou. Não imaginei que ela viria tão rápido. Desliguei a banana e fui até o quarto, mas não tinha ninguém lá. Demorei alguns minutos até lembrar que ela só poderia estar na porta da rua, pois era lá que ficava a campainha.

Abri a porta com medo, mas era apenas o meu filho. Felizmente a chuva já havia acabado e ele não derreteu nem um pouco. Ele me entregou uma sacolinha da farmácia e entrou. Parecia estar muito bravo.

– Caramba pai! Você sabe que não pode ficar sem tomar esse remédio, porque você sempre joga fora? ­– Ele gritou.
– Não sei, não me sinto bem quando tomo ele, não acho que seja saudável.

Ele sentou no sofá e viu a televisão quebrada em cima do tapete. Começou a gritar mais alto.

– O que aconteceu com a televisão??!
– Eles estavam me enganando, então eu quebrei. – Respondi.

Colocou as mãos sobre o rosto, parecia preocupado e muito chateado.

– Enganando como? – Perguntou.
– Enganando mentindo, ué. A voz do telefone que me disse.

Olhou para o telefone e viu o fio desligado. Pareceu muito assustado quando viu isso.

– Meu Deus! Pai, acho que você está muito mal, vamos ao médico hoje, por favor!
– Não precisa filho, estou me sentindo ótimo. Acho que vou morrer hoje.
– O que??
– É, acho que vou morrer hoje, a voz do telefone disse que a morte viria me buscar.
– Que voz do telefone?
– Bem... Na verdade foi a voz na banana.
– Ok pai, vamos fazer assim. Toma o remédio e eu passo a noite aqui, com você.
– Tudo bem, filho...

Ele parecia muito preocupado e abatido, então achei melhor concordar. Fui até a cozinha, peguei um copo com água e tomei o remédio. Ele me observou calado. Parecia satisfeito.

– Que bom pai, assim você vai se sentir bem melhor, você vai ver. Agora eu vou ali no banheiro e já volto.
Levantou e foi.

Cuspi o comprimido na pia da cozinha, joguei o resto no lixo. Se os jornais e a tv me enganavam, por que as farmácias não me enganariam também?
Subitamente me veio a idéia que meu filho também mentia pra mim. Por que ele queria que eu tomasse esses remédios que faziam eu me sentir tão estranho? Para que eu ficasse dopado e aceitasse tudo que dissessem! Com certeza! Lembro que começaram a me dar esses remédios quando passei a desconfiar que o carteiro me espiava enquanto eu tomava banho!
Então, o telefone tocou novamente, como estava na cozinha, atendi a banana, pois ela estava mais perto.

– Você tem toda a razão – A voz disse.
– Eu sabia! Bando de canalhas!
– E não esqueça que você vai morrer.
– Eu sei, todo mundo morre – Retruquei.
– Mas você vai morrer hoje.
– Hoje? Sabe em quanto tempo?

– Logo logo – Respondeu.
Desligou, na mina cara. Filho da puta.

Comi a banana.

Então ouvi o barulho da descarga. Fui até a sala e olhei meu filho saindo do banheiro.


– Você também está me enganando!! – Gritei.
– O Que? ­­- Ele perguntou, fingindo que não sabia de nada, mas sua cara de espanto mostrava que eu estava certo.
– Seu cínico! Vocês todos estão me enganando! Saia daqui já! Volte lá pra sua corja!

Peguei ele pelo braço e empurrei para a rua. Observei rapidamente ele caindo na calçada e tranquei a porta.

Logo ele começou a gritar e bater na porta. Mas ignorei, estava muito chateado com ele.


Subi para o meu quarto, abri a janela para respirar um pouco pior e percebi que havia um pombo andando no umbral.
O olhar terrivelmente ameaçador do pombo deixou bem claro que aquela era a Morte, e estava ali para me levar embora. Um frio subiu minha espinha e falei com o pombo.

“Pombo terrível e impiedoso, que está aí, a ciscar, sei que és a morte, e veio me buscar. Procure algo mais valioso , porque não vai passear? Me deixe aqui e vá assombrar outros umbrais”
E o pombo respondeu “Nunca mais!”

“Pombo, estou tão cheio de vida, não é hora da minha partida. Por que não vai visitar os moribundos nos hospitais, ou os fetos nos esgotos, boiando nos canais?”
E o pombo respondeu “Nunca mais!”.

“Pombo,pássaro malévolo, se esse é o meu fim, nada posso fazer. Mas talvez isso você possa me dizer, por que a morte é você, entre tantos outros animais, que são mais legais?”E o pombo respondeu: “Mas você é chato pra caralho hein!” .
E saiu voando.


Tudo aquilo me deixou muito cansado. Fechei a janela e coloquei meu pijama, já estava na hora de dormir.
Deitei no tapete e me cobri com a cortina. Estava tudo muito confortável.
Agora havia mais alguma pessoa batendo na porta, junto com meu filho. Logo seriam vários. Bando de mentirosos. Já sabia o que iria acontecer, eles iam me segurar e me dar alguma injeção, aí eu acordaria amarrado em uma cama. Começaria a me debater pra sair, então viria uma enfermeira e me daria outra injeção. Só iriam parar quando eu concordasse com tudo que eles dissessem. Por que me tratam assim? Só porque eu sei que eles mentem?
Eles precisam fazer isso? Eu só quero um pouco de paz.

Comecei a me sentir muito triste e decidi não pensar nisso.
Virei para o lado, fechei os olhos, soltei um longo suspiro e morri.
­

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

UTI

♠ Rodrigo Bersogli

Rita estava cansada. A palidez de seu rosto contrastava com o quarto lúgubre, mergulhado num silêncio sepulcral. Aliás, sepulcral era a palavra que melhor definia o ambiente: Vivendo naquele quarto ela se sentia encerrada em um mausoléu do qual não podia fugir. Conectada a aparelhos, ela não conseguiria ir muito longe.

Ela mal podia se recordar de quanto tempo estava ali. Muito menos conseguia imaginar quando sairia de vez. Horas, dias, semanas, meses, anos... Que diferença fazia? O mundo lá fora já tinha aprendido a viver sem ela. E cada vez mais ela se sentia distante desse tal mundo. Será que ele existia mesmo?

Ligada a aparelhos o tempo todo, ficava difícil saber o que era real e o que era ilusão. Tudo o que sabia eram as notícias que lia, e a cada dia que passava acreditava menos nelas. Se ela não podia ver pessoalmente tudo o que noticiavam, como teria a certeza de que aquilo era factível? Rita havia perdido a capacidade de acreditar na maioria das coisas. Principalmente porque essas coisas eram escritas por pessoas. E se havia algo em que ela definitivamente não acreditava era nas pessoas.

No começo, ainda recebia visitas de amigos. Não eram raras às vezes em que pessoas iam até ela para conversar e tentar reavivar o ânimo de antes, mas era sempre em vão. Rita não se empolgava com a companhia dos outrora amigos, e eles se afastaram dela gradativamente. Aos poucos sobrou apenas sua mãe, que preparava sua comida e cuidava de suas coisas. Mas nem mesmo a genitora suportava mais aquela situação, e seus acessos de raiva eram tão comuns quanto seus surtos de impassibilidade. O estado semi-letárgico de Rita foi deixando até sua própria mãe distante. Algo inevitável face à situação.

Rita olhou para o calendário. Era sábado e a temperatura estava agradável. Malditos aparelhos! Porque ela não podia simplesmente se livrar de tudo aquilo e sair correndo para a rua, andar no parque, comer besteiras, encontrar os antigos amigos, escolher roupas... Mas olhou para sua frente e encarou a fria, sólida e eletrônica realidade: vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana os equipamentos ficavam ligados, piscando, olhando para ela. Aquela máquina era seu capataz. Mas, como Zumbi, ela queria fugir daquela senzala e fundar seus quilombos em terras mais ensolaradas.

Não suportava mais a clausura. Sentia-se sufocada, presa. O tique-taque do relógio soava como passos em marcha, pesados, militares, inabaláveis. E vinham para pegá-la, cruéis soldados do exército do Tempo que não poupavam vidas pelo caminho, tampouco demonstravam piedade com seus prisioneiros. Condenados, sempre. O que significava a vida se não enfrentássemos cada soldado-minuto dessa guerra? O que ela queria mesmo era sair dali. Precisava experimentar o mundo lá fora novamente, mesmo sem saber o que iria encontrar, nem se iria sobreviver. Mas estava farta e sentiu que aquela era a hora de dar um ponto final naquilo, mesmo que o ponto final não desse margem a um novo parágrafo.

Levantou-se com certa dificuldade, pois suas costas há muito doíam e incomodavam. Respirou fundo o ar carregado e quente do quarto e fitou os equipamentos: Máquinas vorazes, e por um breve momento Rita não tinha mais certeza se aqueles aparelhos tinham mantido-a viva ou a fizeram morrer lentamente. Era exatamente isso que ela queria descobrir. Então puxou o primeiro fio. Depois, o segundo. Arrancou todos os cabos com extrema vivacidade. Estranhamente se sentiu mais leve, solta. Empolgou-se, foi desplugando tudo e, como se não houvesse amanhã, atirou com violência os equipamentos ao chão. Era como se estivesse possuída, mas ela se sentia de maneira oposta: Livre, totalmente livre, como se a possessão, de fato, fosse ter ficado presa aos aparelhos. Sentiu-se exorcizada e continuou arremessando os equipamentos ao chão, até quebrar peça por peça. Depois, abriu a porta do quarto e saiu correndo.

Sua mãe, que tinha ouvido o escândalo da quebradeira, dirigiu-se aflita ao quarto e mal conseguiu reagir quando viu Rita passar correndo por ela, parar no corredor, voltar, dar-lhe um sonoro e estalado beijo na maçã esquerda do rosto e continuar sua carreira inabalável em direção à rua. Sua surpresa só foi maior quando entrou no quarto e viu, espalhados pelo chão e destruídos, os malditos aparelhos que haviam feito sua filha refém por tanto tempo: Monitor, teclado, modem, CPU, mouse e toda a sorte de parafernálias de informática.

Definitivamente, uma UTI.: Utopia Tecnológica Isolacionista

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Ana e eu - Encontro.

♣Victor Marques.


Uma bela manhã de sábado me acordou com o sol entrando pela janela do quarto que ficara aberta. Fui fechá-la para tentar dormir um pouco mais, mas ao me levantar, senti algo a mais na minha cama. Sim, era uma pessoa. Ao descobrir a dita cuja, vi que era uma mulher, menos mal.

A questão era, como ela veio para ali? A minha ressaca respondia a questão. Era estranho, ela era relativamente bonita, e eu estava em um estado deplorável, ainda mais se levar em consideração que a conheci em um momento de bebedeira.

Não sabia seu nome, nem sua idade e muito menos de onde era e como viera parar aqui! Mas tudo bem, isso seria respondido em breve. Ao me levantar pisei em uma embalagem de preservativo vazia, também não sabia se havia feito sexo direito. Aliás, não sabia nem se o tinha feito.

Não consegui mais dormir, fui ao banheiro para tomar um pouco de água da pia e urinar. Fui à cozinha e vi que não tinha nada para comer. Ela certamente acordaria com fome também. Revirei os bolsos de minha calça e achei o suficiente para comprar uma refeição para dois. Já que ia sair, precisaria avisá-la que voltaria em breve, mas como avisar alguém que eu não sei nem o nome?

Deixei o seguinte bilhete:

“Querida, fui comprar alguma coisa para comermos. Obrigado por ontem, foi ótimo.”

E deixei isso ao lado do travesseiro antes de sair. Quando ganhei a rua, vi um carro estacionado na porta de casa, muito estranho, eu não tinha carro. Talvez fosse dela, talvez fosse de qualquer um que não achou vaga para estacionar na rua principal.

Demorei cerca de meia hora no restaurante perto de casa, montei dois pratos generosos com lasanha, frango, alguns pasteizinhos, carne com molho madeira e um pouco de arroz, caso ela não gostasse de lasanha. Ainda sobrara o suficiente para o cigarro, ótimo.

Quando voltei, ela estava sentada na sala com uma camiseta minha, fumando um cigarro meu e assistindo a minha televisão, como se estivesse em sua própria casa.

Ela me cumprimentou com um caloroso beijo. Fiquei sem jeito de perguntar qual era o nome dela, não o era preciso, nós nunca chamamos ninguém pelo nome mesmo. Mas ela o fez, perguntou o meu.

-Victor -respondi -e o seu?

-Ana.

-Dormiu bem?- perguntei com intuito de saber como havia sido minha desenvoltura.

-Poderia dormir mais realizada.

“Vaca do caralho!” Pensei comigo.

-Comprei comida para nós.

-Ah, que bom, estou morrendo de fome e talvez não tenha dinheiro para comer.

“Alem de vaca é uma miserável do caralho”.

-Aquele carro parado na porta é seu?

-É sim, não se lembra de como chegou em casa ontem?

-Pra ser bem sincero, não, não lembro nem como conheci você.

-Acontece...

-Vou vestir alguma coisa mais confortável.

-Faça como eu, tome um banho também.

“Alem de vaca, miserável, é uma folgada do caralho”.

Entrei no quarto para pegar uma toalha e uma troca de roupa. Surpreendentemente as roupas sujas estavam em um cesto, a cama arrumada, a roupa limpa dobrada, os livros e discos na estante, os cinzeiros vazios, tudo na mais plena ordem.

A minha maior dúvida não foi como aquela bagunça ficou daquele jeito, claro que ela havia arrumado tudo, a questão era, como ela arrumou tudo tão rápido? Muito misteriosa essa mulher, mal comecei a escrever e já usei interrogações demais. Bom, resolvi parar de pensar naquilo e fui tomar meu banho calmamente.

-Tem café na geladeira, se você quiser fazer, a cafeteira está na primeira gaveta.

-Ótimo, farei um café para nós.

Ao sair do banheiro, não a vi na sala, ela estava na cozinha me esperando com uma xícara de café. Havia arrumado a cozinha também, lavou toda a louça, trocou a toalha de mesa e etc.

-Você deveria cuidar melhor da sua casa, está tudo uma zona!

-É, eu sei.

-Nada que eu não possa arrumar.

-Obrigado, mas não sei se é uma boa idéia.

-Claro que é, má idéia é morar nesse chiqueiro.

-Você mora onde?

-Com minha avó.

-Entendi.

Até que não seria ruim um pouco de arrumação, ainda mais feita por outra pessoa. Conversamos um pouco, ela fazia faculdade de psicologia, falava alemão, já morara na Bélgica e na Ucrânia e além de tudo isso, trabalhava em um excelente bar no centro da cidade. “O emprego não é dos dez mais, bêbados dão em cima de mim sempre, como você fez ontem” ela disse, mas usava a desculpa de que ajudava a pagar a faculdade e outras despesas, a avó dela cobrava aluguel!

-Bom, quer almoçar?- perguntei.

-Claro!

Fizemos uma refeição silenciosa, ambos comemos muito bem. Quebrei o silêncio:

-Quer que eu faça outro café?

-Não, eu faço.

-Eu faço, o seu é fraco.

-Tá bom então, faça você.

Fiz um café bem forte, apenas respondendo as suas pergunta, em pouco mais de cinco minutos ela sabia da minha vida inteira, também era fã de interrogações.

-Você vai sair hoje?- ela perguntou.

-Acho que não, talvez compre algumas cervejas e fique em casa.

-Ótimo, hoje é minha folga, vamos alugar uns filmes, eu levo você até o supermercado de carro e você compra alguma coisa para a janta.

-Está bem.

Não era minha idéia passar a noite com visitas, mas uma companhia feminina parecia interessante, resolvi não me opor àquilo. Ela talvez tivesse algum dinheiro para ajudar a pagar algumas cervejas.

Fizemos uma digestão preguiçosa, sentamos na sala e lá ficamos a tarde toda, sem fazer nada, a única coisa que fizemos foi lavar a louça do almoço.

-A minha folga veio bem a calhar hoje, posso passar mais uma noite com você, não sei porque, mas gostei de você.

-Obrigado, você também é legal.

A hora passou rápido , partilhávamos de vários gostos, tínhamos bastante assunto para passar alguns dias juntos. Apesar dos contatos físicos não serem dos melhores, a conversa era boa e ela era bonita.

-Bom, acho melhor irmos comprar alguma coisa para comer e pegar os filmes que você sugeriu. –propus.

-Sim, é bom mesmo.

Quando deixamos a casa, descobri um de seus defeitos, ela dirigia extremamente mal, mas chegamos vivos ao mercado.

-Quantas cervejas você toma? –perguntei.

-Umas seis. –ela me respondeu me estendendo uma nota de vinte.

-Não demoro.

Despedimo-nos com um breve beijo e lá fui eu ás compras. Comprei uma bandeja de carne moída, um litro de leite, farinha, tomates e uma caixa de cerveja com dezoito latas. Gastei mais do que deveria, esperava fazer um bom investimento com Ana.

Voltei ao carro e lá estava ela, do lado de fora, fumando um cigarro e com o som do carro muito alto, ouvia Motörhead, o que me fez gostar mais dela ainda. Ao entrar no carro trocamos mais um beijo e seguimos à locadora. Deixei os filmes ao critério dela.

Foi uma ótima idéia, ela voltou com filmes ótimos, ‘Má educação’e ‘Poderoso chefão’. Voltamos até minha casa e eu fui à cozinha para pôr a cerveja na geladeira e preparar algumas panquecas.

Jantamos e assistimos aos filmes. Tomamos mais umas cervejas e fomos dormir. Dormimos juntos, como um casal que está casado a vinte anos, apenas trocamos beijos de boa noite e dormimos abraçados, nada além disso.

Acordamos tarde no domingo, enquanto eu lavava o rosto ela arrumou a cama. Comemos as sobras do jantar, tomamos mais uma cerveja e ela disse:

-Nossa, olha a hora, preciso trabalhar.

-OK, deixe seu telefone que eu te ligo para repetirmos o programa.

-Você não precisa do meu telefone.

-Você quem sabe.

Passei o domingo solitário, assistindo os tradicionais programas de auditório e tomando as cervejas que sobraram. Nada como um domingo de paz depois daquele estranho ocorrido.

Por volta de onze horas, quando estava lendo um livro deitado na cama, pronto para dormir, a campainha toca. Tive uma surpresa ao abrir a porta, lá estava Ana, com uma mala na mão.

-Voltei.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Tortura


♦ Rafael S.M.F.

Vinte e cinco anos de tormento. Ele não agüentava mais. Derramava-se sobre o sofá em frangalhos da sala. Seu corpo gordo espalhava-se como uma geléia. As roupas estavam reduzidas a farrapos sujos. Andrajos. Chegara ao fundo do poço.
Segurava a arma com as duas mãos, como se fosse um objeto único e sagrado. Observava as paredes da sala escura, completamente sujas, manchas de umidade desciam do teto até metade delas. Às vezes, ele ficava identificando as figuras mais variadas nessas manchas. Talvez ele pudesse esquecer a realidade que o oprimia com esse estúpido passatempo. Sempre fora um garoto deprimido e introvertido. Acreditava que, de certa forma, o mundo inteiro estava contra ele. Todos preparados para atacá-lo assim que pusesse os pés na rua. Mas os últimos dias haviam sido especialmente estranhos e ele não tinha certeza do que passava em sua cabeça. Não tinha certeza do que queria, ou deveria fazer. Mas sabia que aquele era o limite. Havia atingido o ponto sem volta.Fachos de luz que saiam da janela, entre os espaços de um lençol que servia de cortina improvisada, e iluminavam toscamente a decadência que se alastrava ali - nos móveis velhos e empoeirados, no lixo espalhado pelo chão e nele próprio. Observando essa condição lamentável, um nome não parava de latejar em sua cabeça.
Fernanda.
Um som muito vago de crianças que brincavam na rua invadia o recinto. Aquilo o feria imensamente. A maioria das pessoas vê nas crianças a pureza do ser humano, sem maldade e sem rancor, mas ele via a mais grotesca e pura perversidade - verdadeiros demônios - ele sabia muito bem o que as crianças eram capazes de fazer para humilhar alguém. Suas piores lembranças da infância eram de quando estava na escola.
Seu nome, Gusmão, já era suficiente para algumas gozações, mas ainda era pouco.Gusmão sempre fora muito branco e gordo, seu nariz era grande como uma batata, seu cabelo muito crespo e - como se já não bastasse - nunca foi muito inteligente, ao ponto de até alguns professores zombarem de seus erros.O fato de não ter conhecido seu pai também lhe rendera outras brincadeiras de mau gosto e, sendo assim, passou toda a vida escolar sendo vítima de todos os alunos. Comentários realmente cruéis não o poupavam, e ele nunca tinha coragem de revidar.Na hora do recreio os garotos faziam dois grupos e empurravam-no com toda força de um lado para o outro. Ele não conseguia se equilibrar, lutar, ou fugir. Xingavam sua mãe dos nomes mais escabrosos. Algumas pessoas não suportariam saber como seus atos podem influenciar a vida e a mente de alguém. Algo nos pátios das escolas revela a natureza terrivelmente cruel da maioria dos seres humanos.Na adolescência, os poucos que antes sentiam pena de toda aquela humilhação, agora também participavam da brincadeira. As garotas faziam falsos convites que o iludiam e os garotos arrumavam brigas sem motivo, só pelo prazer de espancá-lo.

Enquanto ele permanecia sentado ao sofá, as lembranças ficavam cada vez mais claras. Corroíam sua mente como vermes. Gusmão tentava se desvencilhar daquilo, esquecer tudo. Esquecer que havia passado ou futuro. Ficaria feliz se tivesse que pensar apenas nos desenhos dos fungos nas paredes. Sua angústia doía no peito e ele apertava a arma com mais força, contemplava-a, era sua única salvação. Mas aquela figura, de repente, aparecia novamente em sua memória e o torturava ainda mais. Pulsava como uma ferida hedionda.
Fernanda.

Ela era sua vizinha. Sempre foi a típica garotinha bonita e estudiosa que, com o tempo, se transformou numa mulher linda de corpo escultural. Um corpo santo e intocável aos olhos dele.Gusmão era apaixonado por ela. Daria a vida por ela e, sabendo disso, ela se aproveitava disso para humilhá-lo. O pobre garoto feio, gordo e burro apaixonado pela princesinha da rua, uma verdadeira piada.
Os gritos das crianças na rua o trouxeram de volta ao presente. Olhou mais uma vez para a arma em sua mão. Ele a encontrou no meio das coisas da mãe, dias antes, logo depois que ela morreu. Ela sempre teve a saúde frágil, mas Gusmão acreditava que ela tinha morrido de desgosto. Acreditava que as frustrações a oprimiram tanto que ela não conseguiu suportar.E isso o fez pensar nas próprias frustrações. Não lembrou um dia em sua vida que houvesse uma felicidade completa. Como isso era possível? Não saber o que é dar uma boa risada, uma risada sincera.
Ele olhava a arma cada vez mais obcecado. Era hora de por um fim a tudo aquilo. Os últimos dias haviam sido demais para ele. Queria um fim. Um fim rápido.O que aconteceria no dia seguinte? Encontrariam o corpo ou nem se importariam em procurar? Será que iriam tentar entender o que aconteceu? Iriam entender porque ele fez aquilo? Aquele era o momento. Agora ou nunca!Gusmão olhou a sala em sua volta e levantou. Nunca sentira tanta determinação como naquele momento. Foi até o seu quarto, abriu a porta com violência e apontou a arma para a parede do outro lado do cômodo - contemplou a cena que via ali.

Fernanda estava amarrada em uma cadeira. Os nós eram tão mal feitos que uma pessoa mais forte conseguiria sair sem problemas, mas ela estava muito fraca e debilitada, não oferecia mais nenhum tipo de resistência. Hematomas cobriam todo seu rosto, uma mordaça empurrava tantos pedaços de pano para dentro de sua boca que ela respirava com extrema dificuldade. Uma mancha vermelha crescia pouco a pouco entre suas pernas e pingavam em uma pequena poça que começava a se formar no chão. Ela não desejava mais fugir dali, queria apenas morrer logo. Os três dias naquele quarto foram o suficiente para fazê-la desistir de tudo na vida.Gusmão continuava apontando a arma em direção a ela. Pensou em milhares de coisas para dizer. Pensou em dizer que o sofrimento físico que ela teve naqueles dias não foi nada comparado à tortura mental que ele havia sido submetido desde a infância. Pensou em dizer todas as vezes que ele chorou por causa dela, e de todas aqueles demônios que andavam com ela, aquelas pessoas com suas brincadeiras grotescas. Tentou explicar que tudo aquilo era apenas um reflexo de uma mente perturbada e ela colaborou com aquilo. Mas ele não conseguiu dizer nada.

Apertou o gatilho, três vezes.

Um tiro acertou a testa, um o pescoço e outro o peito. A cabeça tombou para o lado e os ferimentos esguichavam sangue como vazamentos de esgoto no chão da rua. Foi a imagem que apareceu em sua mente, um vazamento de esgoto.Gusmão pensou em jogar a arma no chão, mas guardou-a debaixo da camisa. Foi até a porta da rua e saiu. O sol estava forte, devia ser mais de meio dia. Tudo parecia demasiado claro e colorido pra ele. O ar parecia mais leve. Sentia-se estranho. Sentia-se... satisfeito.
Ele caminhou pela praça ao lado de sua casa e seguiu a avenida. Um sorriso discreto crescia em seu rosto. Sabia que acabara de cometer uma grande atrocidade, mas não se importava.
Observava os prédios comerciais em sua volta e imaginava as pessoas sendo torturadas lentamente até o fim enquanto trabalhavam. Ele não estava totalmente errado, e sabia disso.
As crianças na rua o fizeram lembrar por um momento daqueles tormentos do passado. Lembrou de Fernanda, amarrada e morta em sua casa. Abriu um grande sorriso, enquanto olhava as crianças e tirava a arma debaixo da camisa.

sábado, 26 de setembro de 2009

Confabulando com Marvin pt. II & III

PARTE 02 - SUÉLEN.
Acordar na segunda-feira às seis horas da manhã nos trás um sentimento similar à uma tortura medieval. Eu, felizmente nunca fui submetido à este tipo de tortura, mas acredito piamente que a sensação de estar sentado diante de uma Donzela de Ferro seja muito parecida com que estou sentindo agora.

Um banho gelado ajuda a acordar de vez.Tomei o meu café na sala, assistindo ao telejornal, fiquei surpreso com tanta notícia boa.
Desliguei a TV, acho que amanhã assistirei alguns desenhos animados.
A caminho do trabalho eu a encontrei, Suélen, a loira da casa 67. Como meu velho pai costumava dizer, um mulherão.
- Oi, Melvin... bom dia!- Muito melhor agora, Suélen!
Ela é do tipo que os homens costumam chamar de "gordinha gostosa".
(Tanta carne! E eu aqui, roendo osso...)

- Está indo para o trabalho?
- É né, vamos ajudar alguém a enriquecer.
- Haha! Sempre bem humorado...
Se ela soubesse como está meu humor...
- Acho que descobri isso em algum livro de auto-ajuda.
- Ah! Você também lê esses livros?
E agora, o que eu faço? Digo à ela que acho esses livros uma verdadeira perda de tempo, e que não ajudam niguém além de seus próprios autores, que ganham a vida tentando dizer às pessoas como sorrir, ou tento agir politicamente e digo que aprecio muito este tipo de "entretenimento"?
- O que você faz na rua à este horário?
(Sim, achei melhor mudar de assunto)
- Caí da cama, acredita?
Conversando com Suélen, me senti um pouco melhor, e por um motivo ambíguo, porque ao mesmo tempo em que eu a desejo, considero-a uma porta. Algumas pessoas que nascem em berço de ouro têm esta tendência, talvez por não terem lutado o suficiente, talvez por darem menos valor ao que são, mas eu te pergunto, e você, daria devido valor?
- Melvin, estou lendo um livro ótimo!
- Qual livro?
- Maria Dolores
(putaqueopariu!)
- E do que se trata?- Ah, é um drama lindo sobre uma mulher que entra em depressão por causa de uma unha encravada.
(Franz Kafka se contorce no túmulo)
- Nossa, que trágico!
Eu sinceramente gostaria de me divertir e me emocionar com coisas tão ridículas, acho que já fui assim um dia.
- Olha, Suélen eu gostaria de ficar aqui conversando contigo sobre a Maria Dolores (argh!) mas estou atrasado para o trabalho, vamos combinar de nos encontrarmos no final desta semana, ok?
Ela disse que sim, claro! Mas o que é CLARO, é que não vamos nos encontrar mesmo. Se bem que, se for para ficar conversando sobre Maria Dolores, prefiro ficar em casa lendo algo mais construtivo, como Charles Bukowski.
PARTE 03 - REENCONTRO.
No trabalho as coisas foram como sempre, aquela rotina cansativa, aquela falsidade com os colegas e por aí vai.
Quando cheguei em casa, me surpreendi com o cheiro de cerveja que estava instalado definitivamente na sala, ontem eu derrubei nada menos do que três latas e não movi um músculo para limpar, a bebedeira e toda aquela estória da barata me impediram.

Falando em barata, ontem aquela filha da puta me xingou.(ainda "não acredito que estou acreditando" nessa estória).
- BARATA, ESTÁ AÍ?!(me sinto o pior dos seres humanos gritando isso).
- Não precisa gritar, estou aqui, bem atrás de você!
Pelo menos agora não posso culpar a bebida.
- Cara, não me chame de barata, por acaso eu fico lhe chamando de homem, ou de ser humano? Eu tenho nome!
- Que curioso, baratas também têm nome. Qual é o seu?
- Marvin, e o seu?
- Melvin.
Alguém aí já conversou com uma barata ou com algum inseto?
- Há quanto tempo você vive aqui? Perguntou Marvin.
- Eu é quem pergunto isso para você, afinal de contas, a casa é minha!
- Melvin, estou há pouco mais de duas semanas, sou uma barata de esgoto, mas achei este lugar um pouco mais aconchegante.
- Ah, obrigado! É bom saber que minha casa não é similar a um esgoto.
- E hoje, vai ter cerveja?
Duas semanas na minha casa e até a barata está bebendo, será por isso que meus parentes não vêm me visitar?
- Não costumo beber às segundas.
- Ah! Corta essa, sente aí e vamos conversar, afinal de contas, agora moramos juntos.
Não resisti à este convite tão excêntrico, não é todo dia que temos a oportunidade de tomar uma cerveja ao lado de uma barata tão simpática.
- Marvin, como você deve ter percebido, estou perplexo em estar conversando com uma barata.
- Sim, uma barata americana, da espécie Periplaneta Americana.
- Vivendo e aprendendo, uma barata americana, só falta começar a falar em inglês agora!
- Do you really want to talk in english?

(putaqueopariu!)
- Me fale um pouco de você, é comum as baratas se comunicarem desta forma?
- Não sei, cara! Eu tomei a coragem de falar com você, pois estou vivendo sozinho aqui, depois que saí do esgoto e abandonei minha família e amigos, passei a pensar demais na minha vida e na vida das baratas, eu já não sei quanto tempo de vida eu tenho, geralmente as baratas de minha espécie têm um ciclo de vida que gira em torno de 265 dias.
- Entendo.
- Então eu resolvi fazer diferente, ao invés de fugir dos seres humanos, por que não tentar se envolver com eles? E eu vi em você um cara ideal para tentar uma aproximação, tem mais cerveja aí?
Fui à geladeira e enchi novamente a tampa de garrafa, de onde Marvin degustava aquela cerveja gelada, era difícil de encher a tampa, e a barata era exigente, ainda queria sem colarinho.