terça-feira, 29 de setembro de 2009

Tortura


♦ Rafael S.M.F.

Vinte e cinco anos de tormento. Ele não agüentava mais. Derramava-se sobre o sofá em frangalhos da sala. Seu corpo gordo espalhava-se como uma geléia. As roupas estavam reduzidas a farrapos sujos. Andrajos. Chegara ao fundo do poço.
Segurava a arma com as duas mãos, como se fosse um objeto único e sagrado. Observava as paredes da sala escura, completamente sujas, manchas de umidade desciam do teto até metade delas. Às vezes, ele ficava identificando as figuras mais variadas nessas manchas. Talvez ele pudesse esquecer a realidade que o oprimia com esse estúpido passatempo. Sempre fora um garoto deprimido e introvertido. Acreditava que, de certa forma, o mundo inteiro estava contra ele. Todos preparados para atacá-lo assim que pusesse os pés na rua. Mas os últimos dias haviam sido especialmente estranhos e ele não tinha certeza do que passava em sua cabeça. Não tinha certeza do que queria, ou deveria fazer. Mas sabia que aquele era o limite. Havia atingido o ponto sem volta.Fachos de luz que saiam da janela, entre os espaços de um lençol que servia de cortina improvisada, e iluminavam toscamente a decadência que se alastrava ali - nos móveis velhos e empoeirados, no lixo espalhado pelo chão e nele próprio. Observando essa condição lamentável, um nome não parava de latejar em sua cabeça.
Fernanda.
Um som muito vago de crianças que brincavam na rua invadia o recinto. Aquilo o feria imensamente. A maioria das pessoas vê nas crianças a pureza do ser humano, sem maldade e sem rancor, mas ele via a mais grotesca e pura perversidade - verdadeiros demônios - ele sabia muito bem o que as crianças eram capazes de fazer para humilhar alguém. Suas piores lembranças da infância eram de quando estava na escola.
Seu nome, Gusmão, já era suficiente para algumas gozações, mas ainda era pouco.Gusmão sempre fora muito branco e gordo, seu nariz era grande como uma batata, seu cabelo muito crespo e - como se já não bastasse - nunca foi muito inteligente, ao ponto de até alguns professores zombarem de seus erros.O fato de não ter conhecido seu pai também lhe rendera outras brincadeiras de mau gosto e, sendo assim, passou toda a vida escolar sendo vítima de todos os alunos. Comentários realmente cruéis não o poupavam, e ele nunca tinha coragem de revidar.Na hora do recreio os garotos faziam dois grupos e empurravam-no com toda força de um lado para o outro. Ele não conseguia se equilibrar, lutar, ou fugir. Xingavam sua mãe dos nomes mais escabrosos. Algumas pessoas não suportariam saber como seus atos podem influenciar a vida e a mente de alguém. Algo nos pátios das escolas revela a natureza terrivelmente cruel da maioria dos seres humanos.Na adolescência, os poucos que antes sentiam pena de toda aquela humilhação, agora também participavam da brincadeira. As garotas faziam falsos convites que o iludiam e os garotos arrumavam brigas sem motivo, só pelo prazer de espancá-lo.

Enquanto ele permanecia sentado ao sofá, as lembranças ficavam cada vez mais claras. Corroíam sua mente como vermes. Gusmão tentava se desvencilhar daquilo, esquecer tudo. Esquecer que havia passado ou futuro. Ficaria feliz se tivesse que pensar apenas nos desenhos dos fungos nas paredes. Sua angústia doía no peito e ele apertava a arma com mais força, contemplava-a, era sua única salvação. Mas aquela figura, de repente, aparecia novamente em sua memória e o torturava ainda mais. Pulsava como uma ferida hedionda.
Fernanda.

Ela era sua vizinha. Sempre foi a típica garotinha bonita e estudiosa que, com o tempo, se transformou numa mulher linda de corpo escultural. Um corpo santo e intocável aos olhos dele.Gusmão era apaixonado por ela. Daria a vida por ela e, sabendo disso, ela se aproveitava disso para humilhá-lo. O pobre garoto feio, gordo e burro apaixonado pela princesinha da rua, uma verdadeira piada.
Os gritos das crianças na rua o trouxeram de volta ao presente. Olhou mais uma vez para a arma em sua mão. Ele a encontrou no meio das coisas da mãe, dias antes, logo depois que ela morreu. Ela sempre teve a saúde frágil, mas Gusmão acreditava que ela tinha morrido de desgosto. Acreditava que as frustrações a oprimiram tanto que ela não conseguiu suportar.E isso o fez pensar nas próprias frustrações. Não lembrou um dia em sua vida que houvesse uma felicidade completa. Como isso era possível? Não saber o que é dar uma boa risada, uma risada sincera.
Ele olhava a arma cada vez mais obcecado. Era hora de por um fim a tudo aquilo. Os últimos dias haviam sido demais para ele. Queria um fim. Um fim rápido.O que aconteceria no dia seguinte? Encontrariam o corpo ou nem se importariam em procurar? Será que iriam tentar entender o que aconteceu? Iriam entender porque ele fez aquilo? Aquele era o momento. Agora ou nunca!Gusmão olhou a sala em sua volta e levantou. Nunca sentira tanta determinação como naquele momento. Foi até o seu quarto, abriu a porta com violência e apontou a arma para a parede do outro lado do cômodo - contemplou a cena que via ali.

Fernanda estava amarrada em uma cadeira. Os nós eram tão mal feitos que uma pessoa mais forte conseguiria sair sem problemas, mas ela estava muito fraca e debilitada, não oferecia mais nenhum tipo de resistência. Hematomas cobriam todo seu rosto, uma mordaça empurrava tantos pedaços de pano para dentro de sua boca que ela respirava com extrema dificuldade. Uma mancha vermelha crescia pouco a pouco entre suas pernas e pingavam em uma pequena poça que começava a se formar no chão. Ela não desejava mais fugir dali, queria apenas morrer logo. Os três dias naquele quarto foram o suficiente para fazê-la desistir de tudo na vida.Gusmão continuava apontando a arma em direção a ela. Pensou em milhares de coisas para dizer. Pensou em dizer que o sofrimento físico que ela teve naqueles dias não foi nada comparado à tortura mental que ele havia sido submetido desde a infância. Pensou em dizer todas as vezes que ele chorou por causa dela, e de todas aqueles demônios que andavam com ela, aquelas pessoas com suas brincadeiras grotescas. Tentou explicar que tudo aquilo era apenas um reflexo de uma mente perturbada e ela colaborou com aquilo. Mas ele não conseguiu dizer nada.

Apertou o gatilho, três vezes.

Um tiro acertou a testa, um o pescoço e outro o peito. A cabeça tombou para o lado e os ferimentos esguichavam sangue como vazamentos de esgoto no chão da rua. Foi a imagem que apareceu em sua mente, um vazamento de esgoto.Gusmão pensou em jogar a arma no chão, mas guardou-a debaixo da camisa. Foi até a porta da rua e saiu. O sol estava forte, devia ser mais de meio dia. Tudo parecia demasiado claro e colorido pra ele. O ar parecia mais leve. Sentia-se estranho. Sentia-se... satisfeito.
Ele caminhou pela praça ao lado de sua casa e seguiu a avenida. Um sorriso discreto crescia em seu rosto. Sabia que acabara de cometer uma grande atrocidade, mas não se importava.
Observava os prédios comerciais em sua volta e imaginava as pessoas sendo torturadas lentamente até o fim enquanto trabalhavam. Ele não estava totalmente errado, e sabia disso.
As crianças na rua o fizeram lembrar por um momento daqueles tormentos do passado. Lembrou de Fernanda, amarrada e morta em sua casa. Abriu um grande sorriso, enquanto olhava as crianças e tirava a arma debaixo da camisa.

2 comentários:

  1. Difícil saber até que ponto podemos influenciar a vida de outras pessoas.

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  2. Muitos "monstros" que ficaram de certa forma famosos por sua crueldade, tambem tiveram o seu momento de sofrimento quando crianças.

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