segunda-feira, 5 de outubro de 2009

UTI

♠ Rodrigo Bersogli

Rita estava cansada. A palidez de seu rosto contrastava com o quarto lúgubre, mergulhado num silêncio sepulcral. Aliás, sepulcral era a palavra que melhor definia o ambiente: Vivendo naquele quarto ela se sentia encerrada em um mausoléu do qual não podia fugir. Conectada a aparelhos, ela não conseguiria ir muito longe.

Ela mal podia se recordar de quanto tempo estava ali. Muito menos conseguia imaginar quando sairia de vez. Horas, dias, semanas, meses, anos... Que diferença fazia? O mundo lá fora já tinha aprendido a viver sem ela. E cada vez mais ela se sentia distante desse tal mundo. Será que ele existia mesmo?

Ligada a aparelhos o tempo todo, ficava difícil saber o que era real e o que era ilusão. Tudo o que sabia eram as notícias que lia, e a cada dia que passava acreditava menos nelas. Se ela não podia ver pessoalmente tudo o que noticiavam, como teria a certeza de que aquilo era factível? Rita havia perdido a capacidade de acreditar na maioria das coisas. Principalmente porque essas coisas eram escritas por pessoas. E se havia algo em que ela definitivamente não acreditava era nas pessoas.

No começo, ainda recebia visitas de amigos. Não eram raras às vezes em que pessoas iam até ela para conversar e tentar reavivar o ânimo de antes, mas era sempre em vão. Rita não se empolgava com a companhia dos outrora amigos, e eles se afastaram dela gradativamente. Aos poucos sobrou apenas sua mãe, que preparava sua comida e cuidava de suas coisas. Mas nem mesmo a genitora suportava mais aquela situação, e seus acessos de raiva eram tão comuns quanto seus surtos de impassibilidade. O estado semi-letárgico de Rita foi deixando até sua própria mãe distante. Algo inevitável face à situação.

Rita olhou para o calendário. Era sábado e a temperatura estava agradável. Malditos aparelhos! Porque ela não podia simplesmente se livrar de tudo aquilo e sair correndo para a rua, andar no parque, comer besteiras, encontrar os antigos amigos, escolher roupas... Mas olhou para sua frente e encarou a fria, sólida e eletrônica realidade: vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana os equipamentos ficavam ligados, piscando, olhando para ela. Aquela máquina era seu capataz. Mas, como Zumbi, ela queria fugir daquela senzala e fundar seus quilombos em terras mais ensolaradas.

Não suportava mais a clausura. Sentia-se sufocada, presa. O tique-taque do relógio soava como passos em marcha, pesados, militares, inabaláveis. E vinham para pegá-la, cruéis soldados do exército do Tempo que não poupavam vidas pelo caminho, tampouco demonstravam piedade com seus prisioneiros. Condenados, sempre. O que significava a vida se não enfrentássemos cada soldado-minuto dessa guerra? O que ela queria mesmo era sair dali. Precisava experimentar o mundo lá fora novamente, mesmo sem saber o que iria encontrar, nem se iria sobreviver. Mas estava farta e sentiu que aquela era a hora de dar um ponto final naquilo, mesmo que o ponto final não desse margem a um novo parágrafo.

Levantou-se com certa dificuldade, pois suas costas há muito doíam e incomodavam. Respirou fundo o ar carregado e quente do quarto e fitou os equipamentos: Máquinas vorazes, e por um breve momento Rita não tinha mais certeza se aqueles aparelhos tinham mantido-a viva ou a fizeram morrer lentamente. Era exatamente isso que ela queria descobrir. Então puxou o primeiro fio. Depois, o segundo. Arrancou todos os cabos com extrema vivacidade. Estranhamente se sentiu mais leve, solta. Empolgou-se, foi desplugando tudo e, como se não houvesse amanhã, atirou com violência os equipamentos ao chão. Era como se estivesse possuída, mas ela se sentia de maneira oposta: Livre, totalmente livre, como se a possessão, de fato, fosse ter ficado presa aos aparelhos. Sentiu-se exorcizada e continuou arremessando os equipamentos ao chão, até quebrar peça por peça. Depois, abriu a porta do quarto e saiu correndo.

Sua mãe, que tinha ouvido o escândalo da quebradeira, dirigiu-se aflita ao quarto e mal conseguiu reagir quando viu Rita passar correndo por ela, parar no corredor, voltar, dar-lhe um sonoro e estalado beijo na maçã esquerda do rosto e continuar sua carreira inabalável em direção à rua. Sua surpresa só foi maior quando entrou no quarto e viu, espalhados pelo chão e destruídos, os malditos aparelhos que haviam feito sua filha refém por tanto tempo: Monitor, teclado, modem, CPU, mouse e toda a sorte de parafernálias de informática.

Definitivamente, uma UTI.: Utopia Tecnológica Isolacionista

7 comentários:

  1. Vou falar que eu me identifiquei um pouco com a garota desta história, viu...

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  2. Pasmei! Meu lado hipocondríaco se identificou com a doença dessa moça,

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  3. É uma realidade bem presente na vida das pessoas hoje em dia (inclusive a minha muitas vezes), mas essa forma de pensar é surpreendente, e coerente. Muito bom.

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  4. Agora que eu reli o conto sóbrio, ele pareceu bem melhor. Haha, o final é bom mesmo.

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  5. Excelente, essas UTIs nos fazem acreditar na capacidade de cura através de seus equipamentos. A tecnologia em geral substitui os clássicos anestesicos sociais, ela é o maior de todos

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  6. Sem duvida nenhuma essa foi sensacional, mudou totalmente minha reação no final do conto!!!

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