terça-feira, 13 de outubro de 2009

Eles Estão Enganando Você

♦ Rafael S.M.F.

Eu não estava me sentindo muito bem, provavelmente por que meu remédio tinha acabado. Eles sempre acabam muito rápido quando caem no ralo. Eu precisava sair e comprar mais, mas estava chovendo muito e, depois que eu assisti o Mágico de Oz, passei a ter medo de me molhar e derreter, assim como aquela bruxa verde. Coitada.
Fiquei na janela observando as pessoas na rua. Acho que elas também tinham medo de derreter, pois corriam muito para não se molhar. Especialmente as mulheres, parecia que elas tinham muito medo que o cabelo - ou até mesmo a cabeça inteira - desmanchasse na água.

Estava lá, entretido com as pessoas, quando o telefone tocou fazendo aquele som estranho que parece um grilo espacial. Meu filho me comprou esse telefone há uns tempos atrás. É muito moderno, mas demorei apenas seis meses para aprender a ligar ele, apertando o botão.
Apertei.

– Alô?
– Boa tarde, com quem eu falo?
Era uma voz de mulher.
– Comigo – respondi – E eu estou falando com você.
– Bem, meu nome é Catarina, e sou do...
– Não conheço nenhuma Catarina, então você não me ligou, até logo.
Desliguei.

Fui até o banheiro fazer um lanche, mas a comida tinha acabado. Sentei no vaso e fiquei pensando no que fazer, quando o telefone tocou novamente.
Fui até a sala, peguei o telefone e apertei o botão.

– Alô?
– Boa tarde, com quem eu falo?
Era uma voz de homem.
– Comigo – respondi.
– Bem aqui é do Jornal Folha de São Paulo e consta no nosso sistema que o senhor Luiz não pagou as três ultimas prestações da assinatura, ele está?
– Eu não leio jornal, até logo.
Desliguei e sentei no sofá.

Peguei o jornal ao meu lado e comecei a ler. Não entendia nada daquilo, mas as fotos eram muito divertidas.

Então o telefone tocou novamente.
Fui até a cozinha e abri a geladeira, mas lembrei que o telefone estava na sala. Voltei e atendi.

– Alô?
– Oi pai, tudo bem?
– Oi Ricardo, como vai filho?
– Vou bem, e por aí?
– As coisas vão mal por aqui, acabou a comida e eu não posso sair na chuva se não vou derreter.
– Pai, o senhor não tomou seus remédios de novo?
– Não, eles acabaram quando joguei no ralo.
– Cacete pai! Vou aí levar pro senhor, até logo.
Desligou.

Naquele momento fiquei irritado por ser interrompido o tempo todo e tirei o telefone da tomada. Voltei a sentar no sofá e abri o jornal, mas – para meu espanto – o telefone voltou a tocar, mesmo com o fio desligado. Fui até ele e atendi.

– Não leia o jornal, eles estão enganando você – a voz disse.
– Obrigado por avisar – Respondi.
Desliguei.

Peguei o jornal, rasguei e joguei no lixo do banheiro. Fiquei pensando no que fazer e resolvi ligar a tv. Havia um casal estranho brigando, gritavam muito. Uma mulher ficava sentada no meio com um microfone olhando com cara de idiota, não consegui entender o que era aquilo. Então o telefone tocou novamente. Atendi.

– Eles também estão enganando estão você – A voz disse.
– Obrigado, de novo.
– Por nada – a voz respondeu.
Desliguei.

Peguei a TV, levantei até a altura da minha cabeça e a joguei no chão. Ela espatifou fazendo um barulho terrível.
Decidi fazer um café. Fui até a cozinha, liguei o fogão e coloquei a água no fogo, mas ele apagou. Achei melhor procurar uma chaleira, mas o telefone tocou novamente.
Eu já estava muito irritado e não quis ir até a sala, então peguei uma banana que estava em cima da mesa.

– Alô? – Eu disse.
– A morte vai te buscar hoje – a voz disse.
– Sério, sem nem avisar antes?
– Estou avisando agora.
– Obrigado pela atenção – Eu disse.

Então, a campainha tocou. Não imaginei que ela viria tão rápido. Desliguei a banana e fui até o quarto, mas não tinha ninguém lá. Demorei alguns minutos até lembrar que ela só poderia estar na porta da rua, pois era lá que ficava a campainha.

Abri a porta com medo, mas era apenas o meu filho. Felizmente a chuva já havia acabado e ele não derreteu nem um pouco. Ele me entregou uma sacolinha da farmácia e entrou. Parecia estar muito bravo.

– Caramba pai! Você sabe que não pode ficar sem tomar esse remédio, porque você sempre joga fora? ­– Ele gritou.
– Não sei, não me sinto bem quando tomo ele, não acho que seja saudável.

Ele sentou no sofá e viu a televisão quebrada em cima do tapete. Começou a gritar mais alto.

– O que aconteceu com a televisão??!
– Eles estavam me enganando, então eu quebrei. – Respondi.

Colocou as mãos sobre o rosto, parecia preocupado e muito chateado.

– Enganando como? – Perguntou.
– Enganando mentindo, ué. A voz do telefone que me disse.

Olhou para o telefone e viu o fio desligado. Pareceu muito assustado quando viu isso.

– Meu Deus! Pai, acho que você está muito mal, vamos ao médico hoje, por favor!
– Não precisa filho, estou me sentindo ótimo. Acho que vou morrer hoje.
– O que??
– É, acho que vou morrer hoje, a voz do telefone disse que a morte viria me buscar.
– Que voz do telefone?
– Bem... Na verdade foi a voz na banana.
– Ok pai, vamos fazer assim. Toma o remédio e eu passo a noite aqui, com você.
– Tudo bem, filho...

Ele parecia muito preocupado e abatido, então achei melhor concordar. Fui até a cozinha, peguei um copo com água e tomei o remédio. Ele me observou calado. Parecia satisfeito.

– Que bom pai, assim você vai se sentir bem melhor, você vai ver. Agora eu vou ali no banheiro e já volto.
Levantou e foi.

Cuspi o comprimido na pia da cozinha, joguei o resto no lixo. Se os jornais e a tv me enganavam, por que as farmácias não me enganariam também?
Subitamente me veio a idéia que meu filho também mentia pra mim. Por que ele queria que eu tomasse esses remédios que faziam eu me sentir tão estranho? Para que eu ficasse dopado e aceitasse tudo que dissessem! Com certeza! Lembro que começaram a me dar esses remédios quando passei a desconfiar que o carteiro me espiava enquanto eu tomava banho!
Então, o telefone tocou novamente, como estava na cozinha, atendi a banana, pois ela estava mais perto.

– Você tem toda a razão – A voz disse.
– Eu sabia! Bando de canalhas!
– E não esqueça que você vai morrer.
– Eu sei, todo mundo morre – Retruquei.
– Mas você vai morrer hoje.
– Hoje? Sabe em quanto tempo?

– Logo logo – Respondeu.
Desligou, na mina cara. Filho da puta.

Comi a banana.

Então ouvi o barulho da descarga. Fui até a sala e olhei meu filho saindo do banheiro.


– Você também está me enganando!! – Gritei.
– O Que? ­­- Ele perguntou, fingindo que não sabia de nada, mas sua cara de espanto mostrava que eu estava certo.
– Seu cínico! Vocês todos estão me enganando! Saia daqui já! Volte lá pra sua corja!

Peguei ele pelo braço e empurrei para a rua. Observei rapidamente ele caindo na calçada e tranquei a porta.

Logo ele começou a gritar e bater na porta. Mas ignorei, estava muito chateado com ele.


Subi para o meu quarto, abri a janela para respirar um pouco pior e percebi que havia um pombo andando no umbral.
O olhar terrivelmente ameaçador do pombo deixou bem claro que aquela era a Morte, e estava ali para me levar embora. Um frio subiu minha espinha e falei com o pombo.

“Pombo terrível e impiedoso, que está aí, a ciscar, sei que és a morte, e veio me buscar. Procure algo mais valioso , porque não vai passear? Me deixe aqui e vá assombrar outros umbrais”
E o pombo respondeu “Nunca mais!”

“Pombo, estou tão cheio de vida, não é hora da minha partida. Por que não vai visitar os moribundos nos hospitais, ou os fetos nos esgotos, boiando nos canais?”
E o pombo respondeu “Nunca mais!”.

“Pombo,pássaro malévolo, se esse é o meu fim, nada posso fazer. Mas talvez isso você possa me dizer, por que a morte é você, entre tantos outros animais, que são mais legais?”E o pombo respondeu: “Mas você é chato pra caralho hein!” .
E saiu voando.


Tudo aquilo me deixou muito cansado. Fechei a janela e coloquei meu pijama, já estava na hora de dormir.
Deitei no tapete e me cobri com a cortina. Estava tudo muito confortável.
Agora havia mais alguma pessoa batendo na porta, junto com meu filho. Logo seriam vários. Bando de mentirosos. Já sabia o que iria acontecer, eles iam me segurar e me dar alguma injeção, aí eu acordaria amarrado em uma cama. Começaria a me debater pra sair, então viria uma enfermeira e me daria outra injeção. Só iriam parar quando eu concordasse com tudo que eles dissessem. Por que me tratam assim? Só porque eu sei que eles mentem?
Eles precisam fazer isso? Eu só quero um pouco de paz.

Comecei a me sentir muito triste e decidi não pensar nisso.
Virei para o lado, fechei os olhos, soltei um longo suspiro e morri.
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4 comentários:

  1. Putaquepariu Metal! Agora vc conseguiu superar todas as expectativas! Com um pouquinho de surrealismo sua ironia ganhou todo um sabor a mais. E tá com uma cadência, um ritmo muito bom.

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  2. ÓTIMO conto! Muitíssimo bem escrito, e a sacada do Poe foi do rabo. Muito bom!

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  3. Cara, me senti na cena! Tá, que a cena do comer no banheiro num foi das mais agradáveis, mas né... foda-se!

    Um dia eu escrevo bem assim, parabéns pelo conto!

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