terça-feira, 20 de outubro de 2009

Sinuca de bico

♠ Rodrigo Bersogli

- Ei, Marcão... É sua vez!

Bola seis, caçapa do meio.

- Pois é, Edinho... Como eu ia dizendo, as coisas não andam bem lá em casa. Nem um pouco, cara. Tá foda.

Bola onze, caçapa da ponta.

- Mas então, bicho... O que é que tá pegando? O que tá rolando na sua casa, rapaz?

Bola quatro, ficou na boca. Aproveitou e puxou um cigarro.

- As coisas estão enroladas por lá, cara. Tô que nem quero aparecer de cara limpa hoje, para não fazer merda.

Bola sete, direto na caçapa do canto. Deu uma golada na cerveja.

- Ih, cara... Mas diz aí, qual é o galho? Tu tá com uma cara péssima...

Bola dois grudou na lateral da mesa. Encheu o copo de cerveja rápido, deixando colarinho.

- É a Rosana, Edinho. É a Rosana...

Bola cinco tirou a quatro da boca. Acabou com a cerveja numa longa golada e acendeu um cigarro vagabundo.

- Porra cara, a Rosana? Mas o que é que ela tem, chapa? Tá mal?

Bola quatro empurrou a cinco mas não ficou nem perto da caçapa. Tragada forte no cigarro, outro copo de cerveja cheio de espuma.

- A sacana tá me passando pra trás, bicho. Tô levando bola nas costas.

Paulada na bola cinco, direto na boca. O barulho fez ambos olharem para a mesa, e Edinho encheu o copo de Marcão, depois de apagar a bituca que acabara de jogar no chão com a sola do sapato.

- Cara... Meu, vamos com calma. O que você tá falando é muito sério, Marcão. Eu não a conheço, mas pelo que você sempre fala a Rosana não parece ser mulher disso. E o que te faz achar uma coisa dessas?

Quatro de volta na boca, que agora estava livre.

- Sei não, Edinho... Sei não. Tô com um pé atrás com ela há um tempo, mas agora eu tô ainda mais encucado. Pra você ver... Você sabe que eu jogo bola de quinta-feira, não é? Pois então. Toda quinta quando eu chego de quadra, a Rosana tá deitada. Mas não tem banho no mundo que tire o cheiro do perfume dela, eu conheço bem aquele cheirinho, nego. Ah, se conheço! E ela tá sempre acabada, morta de sono... Agora, vê se não tenho razão: Se ela não saiu de casa, como pode estar com o cheiro, mesmo que de leve, do maldito perfume?

Bola três empurra a dois pra lateral. Outro cigaro é aceso, outra cerveja é aberta.

- Ah cara... É, isso é complicado mesmo... Mas sei lá, de repente ela aproveita que você não tá lá cedo na quinta para fazer algo para ela, oras... E outra, tu não bebe quando sai da quadra? Vai ver ela tá como sempre, mas você fica encanado por causa do gole... Além do mais, porque só agora você tá preocupado com isso? Sei que você joga seu futebolzinho faz tempo...

Edinho tenta derrubar a quatro, mas erra. Acende outro cigarro e pede um conhaque, oferecendo imediatamente para Marcão, que vira numa golada só fazendo uma bizarra careta:

- Valeu, cara. Desculpe te encher com esse história, mas precisava conversar com alguém e você é o único lá da firma que eu posso bater esse tipo de papo.

Bola treze passa longe da caçapa. Com uma nota de um real, Marcão coloca 'Azul da Cor do Mar' de Tim Maia e 'I Just Can't Stop Loving You', de Michael Jackson na hipnótica jukebox, com suas luzinhas e pisca-piscas.

- Relaxa, somos camaradas... Estamos aí pra isso. Mas diz pra mim, o que te levou a pensar nisso agora?

Finalmente, bola quatro cai na caçada do canto. Edinho pede mais dois conhaques e outra cerveja.

- Então, cara... A Rosana sempre foi carinhosa comigo, mas do jeito dela. Sabe como é, né? Faz charme mas, no fundo, gosta de me agradar. O problema agora é que ela tá estranha comigo todo dia, meio fria, sei lá... Mas às quintas pela manhã, justo às quintas, ela fica um amor. Um doce, como se estivesse de consciência pesada, não sei. Mas é só passar a quinta e volta tudo ao normal, bicho.

Bola três para no meio da mesa, depois de uma tabela mal sucedida. Marcão e Edinho viram seus respectivos conhaques e enchem os copos com cerveja.

- Porra, cara. Não acho que isso seja motivo... Toda mulher tem suas fases, suas frescuras. Às vezes ela tá puta com alguma coisa, ou preocupada, ou mesmo cansada... Mulher é foda, você sabe.

Bola dois fica na boca do canto. Edinho faz Marcão virar o conhaque, mas toma o seu devagar, alternando com a cerveja.

- Sim, eu sei... Mas tem mais uma coisa, cara. Eu achei isto atrás do criado-mudo.

Então, Marcão exibe um isqueiro azul, pequeno. Bic. Pede outro conhaque, dessa vez com limão. Vira de uma vez, mais rápido e mais leve que os outros, e acende outro cigarro com extrema velocidade.

- Ué, mas o que tem demais? É só um isqueiro, cara. Eu mesmo já achei tantos em casa...

- Malandro, acorda: A Rosana não fuma. Só EU fumo em casa, e nunca tive ESSE isqueiro! Tá entendendo o que eu tô dizendo? Essa porra não é minha!

Vendo que Marcão estava visivelmente alterado e nervoso, Edinho pediu outro conhaque para ele. À essa altura, o bar já estava quase vazio, e os bêbados que permaneciam por lá pareciam parte da pitoresca decoração. Talvez alguns estivessem sentados lá, naquelas mesmos esquálidos banquinhos, desde antes do bar existir, porém não sabiam. E muito provavelmente continuariam lá, velando e serrando o gole alheio mesmo depois do bar falir. Eram como o balcão, as garrafas, as mesas de sinuca: Patrimônio do local, e eram tão impassíveis quantos os referidos móveis. O que os diferenciava da jukebox eram as luzes, a capacidade musical e o fato da jukebox ter mais moedas dentro dela naquele momento do que a maioria daqueles zumbis funcionais tiveram em toda a sua pseudo-vida.

Edinho tomou seu copo de cerveja, já nem tão gelado quanto antes.

- Marcão, Marcão... Vamos com calma, cara. Será que nenhuma amiga dela deu uma passada por lá e esqueceu?

Bola dois, caçapa do canto. Na sequência, doze cai no meio. Outra cerveja para ele, outro conhaque para Marcão, outros cigarros para ambos.

- Amiga é o caralho, porra! Eu tô levando galho, eu sei. Tô falando, cara. E vou te falar uma coisa: Eu mato aquela ingrata filha da puta! Tá me entendendo? Eu mato!

Virou o conhaque como se fosse cerveja. Empurrou a quinze para o outro lado da mesa, mas não derrubou nada, nem defendeu. Mais um real na jukebox, agora para tocar 'Carolina' de Jorge Ben Jor e 'How deep is your love?', do Bee Gees.

- Calma, cara! Assim você só piora as coisas. Tem é que ter certeza da situação antes de mais nada. Porque você não falta ao futebol na quinta e fica à espreita, de tocaia, para ver o que é que tá acontecendo de verdade? É melhor do que tomar uma atitude precipitada, cara. Se precisar, eu fico contigo nessa arapuca, a gente vê que merda dá.

Bola oito cai lenta e caprichosamente no canto. Edinho oferece uma vodka ao amigo, que toma sem pestanejar nem questionar, já trôpego e ofegante.

- Porra, Edinho! Tá falando sério, cara? Tu faria isso comigo? Hic!

Marcão tenta acertar a bola treze, sem sucesso. Mal consegue permanecer em pé sem cambalear.

- Calma, Marcão! É claro que eu fico ao teu lado nessa, cara. Mas acho que por hoje já deu, hein? Você já tá no grau, amigo. Eu vou dar uma mijada; me espera aí para irmos embora. Tá tarde e você já bebeu demais por uma noite, chapa. Tenta ficar aí na cadeira sem cair até eu voltar, hein?

Marcão mexeu a cabeça positivamente, porém sem muita coordenação. Edinho foi ao banheiro e, em frente ao mictório, se sentiu aliviado em todos os sentidos. Ao virar para trás, logo após fechar o zíper, se deparou com Marcão na porta do banheiro. Exalava álcool por todos os poros e tinha os olhos vermelhos, marejados. Fitou o ambiente com uma calma gélida para um homem em sua situação e foi desenfreadamente em direção ao amigo, dando-lhe um pesado e forte abraço. Edinho ainda tentou balbuciar que era melhor já irem embora, mas não conseguiu terminar a frase porque Marcão o interrompou, com os lábios colados em sua orelha:

- Eu sei que foi você, filho da puta.

Ao terminar essas palavras, ditas quase como sussuros, Edinho sentiu a lâmina penetrando suas entranhas uma, duas, três vezes. Não soube precisar se houveram novas investidas, pois a partir daí, não sentiu mais nada. Sua única reação foi estender a mão em direção à Marcão, numa vã tentativa de reaver seu isqueiro perdido.

2 comentários:

  1. Hahaha, muito bom! Ainda bem que não é só nos meus contos que alguém morre.

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  2. muito bom!Pelo menos ele não morreu e cancer no pulmão. :)

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