terça-feira, 29 de setembro de 2009

Tortura


♦ Rafael S.M.F.

Vinte e cinco anos de tormento. Ele não agüentava mais. Derramava-se sobre o sofá em frangalhos da sala. Seu corpo gordo espalhava-se como uma geléia. As roupas estavam reduzidas a farrapos sujos. Andrajos. Chegara ao fundo do poço.
Segurava a arma com as duas mãos, como se fosse um objeto único e sagrado. Observava as paredes da sala escura, completamente sujas, manchas de umidade desciam do teto até metade delas. Às vezes, ele ficava identificando as figuras mais variadas nessas manchas. Talvez ele pudesse esquecer a realidade que o oprimia com esse estúpido passatempo. Sempre fora um garoto deprimido e introvertido. Acreditava que, de certa forma, o mundo inteiro estava contra ele. Todos preparados para atacá-lo assim que pusesse os pés na rua. Mas os últimos dias haviam sido especialmente estranhos e ele não tinha certeza do que passava em sua cabeça. Não tinha certeza do que queria, ou deveria fazer. Mas sabia que aquele era o limite. Havia atingido o ponto sem volta.Fachos de luz que saiam da janela, entre os espaços de um lençol que servia de cortina improvisada, e iluminavam toscamente a decadência que se alastrava ali - nos móveis velhos e empoeirados, no lixo espalhado pelo chão e nele próprio. Observando essa condição lamentável, um nome não parava de latejar em sua cabeça.
Fernanda.
Um som muito vago de crianças que brincavam na rua invadia o recinto. Aquilo o feria imensamente. A maioria das pessoas vê nas crianças a pureza do ser humano, sem maldade e sem rancor, mas ele via a mais grotesca e pura perversidade - verdadeiros demônios - ele sabia muito bem o que as crianças eram capazes de fazer para humilhar alguém. Suas piores lembranças da infância eram de quando estava na escola.
Seu nome, Gusmão, já era suficiente para algumas gozações, mas ainda era pouco.Gusmão sempre fora muito branco e gordo, seu nariz era grande como uma batata, seu cabelo muito crespo e - como se já não bastasse - nunca foi muito inteligente, ao ponto de até alguns professores zombarem de seus erros.O fato de não ter conhecido seu pai também lhe rendera outras brincadeiras de mau gosto e, sendo assim, passou toda a vida escolar sendo vítima de todos os alunos. Comentários realmente cruéis não o poupavam, e ele nunca tinha coragem de revidar.Na hora do recreio os garotos faziam dois grupos e empurravam-no com toda força de um lado para o outro. Ele não conseguia se equilibrar, lutar, ou fugir. Xingavam sua mãe dos nomes mais escabrosos. Algumas pessoas não suportariam saber como seus atos podem influenciar a vida e a mente de alguém. Algo nos pátios das escolas revela a natureza terrivelmente cruel da maioria dos seres humanos.Na adolescência, os poucos que antes sentiam pena de toda aquela humilhação, agora também participavam da brincadeira. As garotas faziam falsos convites que o iludiam e os garotos arrumavam brigas sem motivo, só pelo prazer de espancá-lo.

Enquanto ele permanecia sentado ao sofá, as lembranças ficavam cada vez mais claras. Corroíam sua mente como vermes. Gusmão tentava se desvencilhar daquilo, esquecer tudo. Esquecer que havia passado ou futuro. Ficaria feliz se tivesse que pensar apenas nos desenhos dos fungos nas paredes. Sua angústia doía no peito e ele apertava a arma com mais força, contemplava-a, era sua única salvação. Mas aquela figura, de repente, aparecia novamente em sua memória e o torturava ainda mais. Pulsava como uma ferida hedionda.
Fernanda.

Ela era sua vizinha. Sempre foi a típica garotinha bonita e estudiosa que, com o tempo, se transformou numa mulher linda de corpo escultural. Um corpo santo e intocável aos olhos dele.Gusmão era apaixonado por ela. Daria a vida por ela e, sabendo disso, ela se aproveitava disso para humilhá-lo. O pobre garoto feio, gordo e burro apaixonado pela princesinha da rua, uma verdadeira piada.
Os gritos das crianças na rua o trouxeram de volta ao presente. Olhou mais uma vez para a arma em sua mão. Ele a encontrou no meio das coisas da mãe, dias antes, logo depois que ela morreu. Ela sempre teve a saúde frágil, mas Gusmão acreditava que ela tinha morrido de desgosto. Acreditava que as frustrações a oprimiram tanto que ela não conseguiu suportar.E isso o fez pensar nas próprias frustrações. Não lembrou um dia em sua vida que houvesse uma felicidade completa. Como isso era possível? Não saber o que é dar uma boa risada, uma risada sincera.
Ele olhava a arma cada vez mais obcecado. Era hora de por um fim a tudo aquilo. Os últimos dias haviam sido demais para ele. Queria um fim. Um fim rápido.O que aconteceria no dia seguinte? Encontrariam o corpo ou nem se importariam em procurar? Será que iriam tentar entender o que aconteceu? Iriam entender porque ele fez aquilo? Aquele era o momento. Agora ou nunca!Gusmão olhou a sala em sua volta e levantou. Nunca sentira tanta determinação como naquele momento. Foi até o seu quarto, abriu a porta com violência e apontou a arma para a parede do outro lado do cômodo - contemplou a cena que via ali.

Fernanda estava amarrada em uma cadeira. Os nós eram tão mal feitos que uma pessoa mais forte conseguiria sair sem problemas, mas ela estava muito fraca e debilitada, não oferecia mais nenhum tipo de resistência. Hematomas cobriam todo seu rosto, uma mordaça empurrava tantos pedaços de pano para dentro de sua boca que ela respirava com extrema dificuldade. Uma mancha vermelha crescia pouco a pouco entre suas pernas e pingavam em uma pequena poça que começava a se formar no chão. Ela não desejava mais fugir dali, queria apenas morrer logo. Os três dias naquele quarto foram o suficiente para fazê-la desistir de tudo na vida.Gusmão continuava apontando a arma em direção a ela. Pensou em milhares de coisas para dizer. Pensou em dizer que o sofrimento físico que ela teve naqueles dias não foi nada comparado à tortura mental que ele havia sido submetido desde a infância. Pensou em dizer todas as vezes que ele chorou por causa dela, e de todas aqueles demônios que andavam com ela, aquelas pessoas com suas brincadeiras grotescas. Tentou explicar que tudo aquilo era apenas um reflexo de uma mente perturbada e ela colaborou com aquilo. Mas ele não conseguiu dizer nada.

Apertou o gatilho, três vezes.

Um tiro acertou a testa, um o pescoço e outro o peito. A cabeça tombou para o lado e os ferimentos esguichavam sangue como vazamentos de esgoto no chão da rua. Foi a imagem que apareceu em sua mente, um vazamento de esgoto.Gusmão pensou em jogar a arma no chão, mas guardou-a debaixo da camisa. Foi até a porta da rua e saiu. O sol estava forte, devia ser mais de meio dia. Tudo parecia demasiado claro e colorido pra ele. O ar parecia mais leve. Sentia-se estranho. Sentia-se... satisfeito.
Ele caminhou pela praça ao lado de sua casa e seguiu a avenida. Um sorriso discreto crescia em seu rosto. Sabia que acabara de cometer uma grande atrocidade, mas não se importava.
Observava os prédios comerciais em sua volta e imaginava as pessoas sendo torturadas lentamente até o fim enquanto trabalhavam. Ele não estava totalmente errado, e sabia disso.
As crianças na rua o fizeram lembrar por um momento daqueles tormentos do passado. Lembrou de Fernanda, amarrada e morta em sua casa. Abriu um grande sorriso, enquanto olhava as crianças e tirava a arma debaixo da camisa.

sábado, 26 de setembro de 2009

Confabulando com Marvin pt. II & III

PARTE 02 - SUÉLEN.
Acordar na segunda-feira às seis horas da manhã nos trás um sentimento similar à uma tortura medieval. Eu, felizmente nunca fui submetido à este tipo de tortura, mas acredito piamente que a sensação de estar sentado diante de uma Donzela de Ferro seja muito parecida com que estou sentindo agora.

Um banho gelado ajuda a acordar de vez.Tomei o meu café na sala, assistindo ao telejornal, fiquei surpreso com tanta notícia boa.
Desliguei a TV, acho que amanhã assistirei alguns desenhos animados.
A caminho do trabalho eu a encontrei, Suélen, a loira da casa 67. Como meu velho pai costumava dizer, um mulherão.
- Oi, Melvin... bom dia!- Muito melhor agora, Suélen!
Ela é do tipo que os homens costumam chamar de "gordinha gostosa".
(Tanta carne! E eu aqui, roendo osso...)

- Está indo para o trabalho?
- É né, vamos ajudar alguém a enriquecer.
- Haha! Sempre bem humorado...
Se ela soubesse como está meu humor...
- Acho que descobri isso em algum livro de auto-ajuda.
- Ah! Você também lê esses livros?
E agora, o que eu faço? Digo à ela que acho esses livros uma verdadeira perda de tempo, e que não ajudam niguém além de seus próprios autores, que ganham a vida tentando dizer às pessoas como sorrir, ou tento agir politicamente e digo que aprecio muito este tipo de "entretenimento"?
- O que você faz na rua à este horário?
(Sim, achei melhor mudar de assunto)
- Caí da cama, acredita?
Conversando com Suélen, me senti um pouco melhor, e por um motivo ambíguo, porque ao mesmo tempo em que eu a desejo, considero-a uma porta. Algumas pessoas que nascem em berço de ouro têm esta tendência, talvez por não terem lutado o suficiente, talvez por darem menos valor ao que são, mas eu te pergunto, e você, daria devido valor?
- Melvin, estou lendo um livro ótimo!
- Qual livro?
- Maria Dolores
(putaqueopariu!)
- E do que se trata?- Ah, é um drama lindo sobre uma mulher que entra em depressão por causa de uma unha encravada.
(Franz Kafka se contorce no túmulo)
- Nossa, que trágico!
Eu sinceramente gostaria de me divertir e me emocionar com coisas tão ridículas, acho que já fui assim um dia.
- Olha, Suélen eu gostaria de ficar aqui conversando contigo sobre a Maria Dolores (argh!) mas estou atrasado para o trabalho, vamos combinar de nos encontrarmos no final desta semana, ok?
Ela disse que sim, claro! Mas o que é CLARO, é que não vamos nos encontrar mesmo. Se bem que, se for para ficar conversando sobre Maria Dolores, prefiro ficar em casa lendo algo mais construtivo, como Charles Bukowski.
PARTE 03 - REENCONTRO.
No trabalho as coisas foram como sempre, aquela rotina cansativa, aquela falsidade com os colegas e por aí vai.
Quando cheguei em casa, me surpreendi com o cheiro de cerveja que estava instalado definitivamente na sala, ontem eu derrubei nada menos do que três latas e não movi um músculo para limpar, a bebedeira e toda aquela estória da barata me impediram.

Falando em barata, ontem aquela filha da puta me xingou.(ainda "não acredito que estou acreditando" nessa estória).
- BARATA, ESTÁ AÍ?!(me sinto o pior dos seres humanos gritando isso).
- Não precisa gritar, estou aqui, bem atrás de você!
Pelo menos agora não posso culpar a bebida.
- Cara, não me chame de barata, por acaso eu fico lhe chamando de homem, ou de ser humano? Eu tenho nome!
- Que curioso, baratas também têm nome. Qual é o seu?
- Marvin, e o seu?
- Melvin.
Alguém aí já conversou com uma barata ou com algum inseto?
- Há quanto tempo você vive aqui? Perguntou Marvin.
- Eu é quem pergunto isso para você, afinal de contas, a casa é minha!
- Melvin, estou há pouco mais de duas semanas, sou uma barata de esgoto, mas achei este lugar um pouco mais aconchegante.
- Ah, obrigado! É bom saber que minha casa não é similar a um esgoto.
- E hoje, vai ter cerveja?
Duas semanas na minha casa e até a barata está bebendo, será por isso que meus parentes não vêm me visitar?
- Não costumo beber às segundas.
- Ah! Corta essa, sente aí e vamos conversar, afinal de contas, agora moramos juntos.
Não resisti à este convite tão excêntrico, não é todo dia que temos a oportunidade de tomar uma cerveja ao lado de uma barata tão simpática.
- Marvin, como você deve ter percebido, estou perplexo em estar conversando com uma barata.
- Sim, uma barata americana, da espécie Periplaneta Americana.
- Vivendo e aprendendo, uma barata americana, só falta começar a falar em inglês agora!
- Do you really want to talk in english?

(putaqueopariu!)
- Me fale um pouco de você, é comum as baratas se comunicarem desta forma?
- Não sei, cara! Eu tomei a coragem de falar com você, pois estou vivendo sozinho aqui, depois que saí do esgoto e abandonei minha família e amigos, passei a pensar demais na minha vida e na vida das baratas, eu já não sei quanto tempo de vida eu tenho, geralmente as baratas de minha espécie têm um ciclo de vida que gira em torno de 265 dias.
- Entendo.
- Então eu resolvi fazer diferente, ao invés de fugir dos seres humanos, por que não tentar se envolver com eles? E eu vi em você um cara ideal para tentar uma aproximação, tem mais cerveja aí?
Fui à geladeira e enchi novamente a tampa de garrafa, de onde Marvin degustava aquela cerveja gelada, era difícil de encher a tampa, e a barata era exigente, ainda queria sem colarinho.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Filosofia de Privada

♠ Rodrigo Bersogli

20h47. O horário do expediente já havia há muito se encerrado, mas Araújo ainda estava no escritório. Era uma quarta-feira, e ele precisava fechar um balanço contábil urgentemente.

Funcionário dedicado, exemplar. Almejava há muito tempo uma promoção, e agora que percebia a iminência de consegui-la, não podia fraquejar. Havia se colocado à disposição para fechar o tal balanço, e nada iria impedi-lo. Nada. Nem mesmo as três horas que já estava dedicando além do seu horário habitual.

O trabalho em si não era difícil, mas exigia do contador uma atenção acima do normal. Qualquer erro poderia comprometer o resultado do balanço, e isso era tudo o que ele não queria. Precisava mostrar eficiência ao Seu Constantino, o dono do escritório. Se conseguisse aquela promoção, boa parte de seus problemas financeiros estariam resolvidos. Portanto, não havia tempo para descanso. Sabia que mais uma hora ali e tudo estaria pronto, como planejara.

O escritório estava absolutamente vazio. Todos os outros funcionários haviam ido embora às 17h30, como de costume. Araújo se sentia ainda mais livre para trabalhar sem toda aquela gente falando ao seu redor, e essa sensação de liberdade o fazia produzir mais e melhor. Havia até tirado os sapatos e afrouxado o cinto, e estava espantado com o progresso que tinha feito com o balanço. Era incrível como se sentia bem ali, sem a presença de todos. Sem a pressão cotidiana. Sem o telefone tocando irritantemente, sem o Seu Constantino esbravejando a todo o momento, sem o Souza lamentando sua falta de sorte com as mulheres que conhecia via internet. Aquele silêncio era revigorador.

Sentia-se em casa. Afinal, passava mais tempo ali, enfurnado naquele escritório, do que em sua própria residência. Expedientes de 12, 13 horas por dia haviam se tornado rotina para ele nesses últimos meses. Passara sábados e feriados também ali em algumas ocasiões, mas não reclamava. Tinha um emprego que lhe pagava aluguel, comida, telefone, internet, água e luz. Custeava também sua cerveja e encontros com mulheres, afinal ele não era de ferro. Ninguém era. Aquele salário não era dos melhores, mas bancava sua vida, sem maiores luxos.

Estava tão à vontade que resolveu ir ao banheiro antes de terminar o trabalho. Uma boa cagada, um cigarro e um pouco de água no rosto o deixariam novinho em folha para acabar de vez com o maçante balanço. Não pensou duas vezes: Calçou seus sapatos, pegou um cigarro no maço e dirigiu-se para o pequeno banheiro unissex do escritório.

Fumar ali no banheiro era proibido, mas quem se importaria naquele momento? Estava lá, sozinho. Bastava deixar o vitrô aberto que o cheiro se dissiparia durante a noite. Ele sabia, já havia feito isso muitas vezes. Portanto, logo ao sentar no vaso, já sem calças, acendeu o cigarro e deu uma longa tragada, como se pudesse queimar todos os papéis do maldito balanço com aquela brasa.

'Foi uma boa cagada', pensou. Estava aliviado e pronto para terminar o serviço. Limpou-se, vestiu as calças e deu descarga, mandando tudo por água abaixo, inclusive a bituca do cigarro. Lavou o rosto longamente, se ajeitou na roupa e empurrou a porta para sair. Nada. Não se moveu. Tentou forçar a maçaneta para cima e para baixo, mas a porta permaneceu fechada. Usou mais força e tentou empurrar novamente, mas não obteve sucesso. 'Que merda!', exclamou.

Começou a se sentir impaciente. Agitava incessantemente a maçaneta e forçava a porta em todos os sentidos, mas não conseguia abri-la de forma alguma. Esbravejou, chutou, xingou, empurrou. Nada. Estava emperrada. Araújo estava trancado no banheiro, enfim. Não bastava ter de trabalhar até mais tarde, era preciso mais um entrevero para completar sua desventura.

O escritório localizava-se no 3º andar de um prédio de cinco andares, na zona oeste da capital. Bairro tranquilo, arborizado. O porteiro era o único que ficava lá durante a noite, mas a entrada do prédio era na parte oposta ao escritório. Principalmente ao banheiro, cujo vitrô dava para a rua de trás. Gritar ali não adiantaria, definitivamente. Para decidir o que fazer, o contador sentou-se na privada fechada. Apalpou os bolsos e descobriu que seu celular não estava ali. Havia deixado no bolso do casaco, em sua cadeira. A única coisa que estava em seu bolso era o isqueiro. Droga, nem para trazer o celular ou o resto do maço!

Precisava fazer algo. Não podia ficar ali a noite toda. Tinha o balanço para terminar, tinha que ir para casa, tinha que sair!

O banheiro era minúsculo. Resumia-se a um vaso sanitário ordinário, uma pia, um espelho e azulejos marrons. Um vitrô se erguia na parte traseira, onde havia um cano de chuveiro lacrado. O escritório era um antigo apartamento residencial, e como todos no pequenino prédio, se transformaram em salas comerciais por causa de sua localização privilegiada. Olhando ao redor, Araújo teve uma idéia: Atirar o rolo de papel higiênico para baixo, segurando uma das pontas para indicar a algum transeunte que havia gente ali. A luz estava acesa, e provavelmente era a única no prédio. Seria fácil para alguém identificar aquilo como algo anormal, e havia a esperança de que se alguém visse a cena, pudesse avisar ao porteiro. Era uma tábua de salvação.

Segurando uma das pontas, desenrolou o papel higiênico pelo vitrô e deixou-o rolar para baixo. Não sentiu o peso do rolo na queda, e logo descobriu o motivo: O papel era frágil demais e rompeu-se ao cair. Nesse momento, deveria ter apenas um rolo de papel higiênico barato e áspero rolando pela rua: Seu plano falhara.

Uma fúria tomou conta de sua mente. Atirou-se violentamente contra a porta, e desferiu golpes ininterruptos numa tentativa de derrubá-la. Em vão. Estava emperrada, e Araújo simplesmente não compreendia como aquilo poderia ter ocorrido. Não se recordava de ter batido a porta ao entrar. Como teria ficado trancado ali? Burro, burro, burro! Sentia-se o mais idiota dos seres humanos. Novamente, sentou-se no vaso sanitário fechado e colocou-se a pensar.

'Maldita hora que aceitei fazer esse balanço', murmurou. Já deveria ser tarde, e ele ainda estava ali. Era hora da novela, provavelmente. Ele deveria estar em casa, jantando e assistindo televisão. Depois, era só passar a roupa e assistir ao futebol tomando uma cerveja. Desde que se separou de Márcia, ele próprio lavava e passava suas roupas. Sobrava pouco tempo para sair com os amigos durante a semana, mas era melhor assim. Havia começado a gostar de ver novelas, apesar de contas. Que mal havia?

Araújo não se conformava em ter de ficar a noite toda ali. Porque diabos tinha de passar por aquilo? Estava trabalhando tanto, se dedicando... Se pelo menos fosse como a Sandra, entenderia. Sandra havia entrado no escritório muito depois dele, mas já havia recebido duas promoções. Tinha menos conhecimentos contábeis, mas tinha coxas e seios muito mais atraentes. Principalmente para o Seu Constantino, que tentava disfarçar a todo custo que andava traçando aquela gostosa, escondido. Mas para que disfarçar? No fundo, todos sabiam. Araújo já havia perdido uma promoção para ela, mas não tinha como concorrer com aquele corpo. Era a vida, e por isso ele estava ali naquela noite.

Quando começou a trabalhar no escritório, não pensou que as coisas seriam assim. Tudo parecia novo e promissor, e a possibilidade de ter um emprego fixo e formal o deixou animado. Tanto que não ficou decepcionado ao perder a primeira promoção, pois ele ainda tinha seu salário e pagava suas contas. Afinal, não era esse o objetivo? Pagar as contas? Tudo bem que vez por outra não dava para pagar tudo, mas quem conseguia?

Era engraçado. Estava se dando conta que realmente não tinha tempo para nada, mas estava bem assim. Sentia-se confortável. Mas até que ponto? E o que era o conforto que sentia, afinal? Porque vivendo como estava, não conseguia fazer nada além de trabalhar e cuidar dos afazeres de casa. Como os caras que mudaram o mundo fizeram? Pararam de trabalhar? Deixaram de lavar e passar roupa? Ou eram todos burgueses?

Será que era por isso que forçavam as pessoas a trabalhar 10 horas por dia ou mais, fora o tempo para estudar ou cuidar da casa? Para evitar que pensassem e mudassem as coisas? Será que esse papo de capitalismo era balela? Que a intenção maior por trás de tanta força de trabalho era esgotar as energias das pessoas de tal forma que elas não pudessem se rebelar contra nada, e não apenas encher o mundo de bens de consumo? Bens de consumo esses que as pessoas passariam 10 horas por dia trabalhando para comprar. Que saco.

Um sorriso discreto e desalentador fora esboçado pelo contador.

Talvez seja por isso que as novelas eram todas no horário onde as pessoas já estavam em casa, comendo ou espalhadas no sofá. Quanto tempo durava cada capítulo da novela? Uma hora? Céus, assistir a novela por uma semana era o equivalente a assistir três filmes! Qual seria o sentido em produzir tantas horas e episódios senão hipnotizar, transformando os telespectadores em zumbis funcionais? Já imaginou o quanto as pessoas poderiam ler, pensar, procurar informações ou mesmo discutir assuntos relevantes se não tivessem a novela ou o futebol para ocupar suas horas? Ele tremeu com esse pensamento.

Mas e os revolucionários? Porque a maioria das revoluções recentes foram feitas por estudantes? Será que era porque eles não tinham nada a perder? É, isso foi antes que eles travassem suas próprias revoluções internas, primeiro com o ICQ, depois com o MSN, Orkut, Twitter... Revoluções onde quem perde é o pensamento produtivo, crítico. Para cada informação relevante que eles procuram na internet, são doze horas de improdutividade coletiva sequencial. E viva a inclusão digital. Não seria isso apenas mais uma novela, mas agora nós mesmos éramos os coadjuvantes?

Como um cara que tinha de trabalhar duro durante dez horas por dia, fora o tempo que passa no trânsito ou no transporte coletivo, poderia de fato conceber uma revolta? Como fazer alguém nessa situação pensar em mudar tudo, derrubar os alicerces, se ele tinha de se preocupar em acordar às 05h30 para trabalhar? Ainda mais se, depois do trabalho, ele estivesse tão esgotado que a novela, a cerveja, o futebol ou a internet era tudo o que ele podia desejar?

A idéia de largar tudo e viver na malemolência não parecia tão ruim. Se a vadiagem era um crime, porque a opressão cotidiana não era? Viver de subsistência, em algum campo ou margem de rio era algo que nunca antes havia imaginado, mas que agora o apetecia. Mesmo debaixo de alguma ponte deveria haver mais dignidade do que ali, naquela rotina. Na pior das hipóteses, poderia sumir para algum canto afastado nos confins do país e ali fazer o seu rincão. Quem sabe assim não se encontraria, de fato? Sentiria falta dos amigos e de certos confortos, mas teria coisas inestimáveis: Paz, tempo e oportunidade de entender melhor toda aquela engrenagem onde todos estavam metidos, cada qual com a sua respectiva rosca e parafuso.

Sem se dar conta, Araújo estava fazendo algo que não fazia há tempos: Estava pensando. Ficar naquele banheiro, trancado, o forçou a fazer algo que ele não conseguia fazer sempre. E não estamos falando sobre cagar. Ele estava, pela primeira vez, tentando entender o mecanismo que o aprisionara. Não, não estamos falando sobre a fechadura da porta. Nesse sentido, a fechadura o oprimia menos do que todo o sistema que estava, de fato, prendendo-o. Foi o establishmet quem o trancou, e não uma porta emperrada. Disso ele estava cada vez mais convencido. Mas como sair de tudo isso? Cedo ou tarde, alguém chegaria ao escritório e acabaria abrindo a porta. Mas e a porta do sistema, quando alguém iria abrir?

Desejou muito um cigarro. Mais do que o jantar. Tomou água diretamente da torneira da pia e olhou-se no espelho. Sentia-se arrasado. Haviam acabado com ele, com tanto tempo dedicado a uma causa que nem era sua, por sinal. Mas, desde as últimas horas que passou ali, era como se tivesse voltado a ter alguma noção das coisas, de como estava se arrastando para um buraco que todos cavavam e apenas alguns não caíam. Deu um grito, um grito prolongado e visceral, mas não na tentativa de chamar a atenção de alguém. Estava chamando sua própria atenção, coisa que não fazia há anos.

Lentamente, ele adormeceu. Dormiu sentado no vaso, desconfortável e desajeitado. Teve sonhos estranhos: Estava escalando uma montanha com amigos quando, de repente, surgiu uma avalanche e eles saíram correndo. Depois, estava na escola, em sua sala primária, mas com a idade atual. Fugiu da escola diretamente para casa, e quando percebeu, estava nu. Sonhou também que estava à beira de um lago, descalço, pescando. Mas não pegava peixes. Apenas estava lá, à toa. Por muito, muito tempo. E nenhum peixe. Uma profusão de cores e formas reais davam um brilho especial aos sonhos, e ele mal pode acreditar quando ouviu barulhos que o acordaram. Havia amanhecido!

Esmurrou a porta com todas as forças que possuía. Em instantes, discerniu as vozes do outro lado da porta: Souza, Sandra, Seu Constantino e a faxineira. Como era o nome dela mesmo? Não importa. Gritou e, em poucos momentos, Souza conseguiu desparafusar a antiga maçaneta e destravar a porta. Estava livre!

Logo que saiu do banheiro, viu o rosto confuso de todos. Ainda atônito, pensou em explicar o que havia ocorrido e esclarecer aquele incidente. Porém, a única coisa que saiu da sua boca foi:

- VÃO TOMAR NO CU! ESTÃO OUVINDO? NO CU!

Rapidamente, pegou seu casaco em sua cadeira. Conferiu o celular: Eram 07h38 da manhã. Nenhuma ligação perdida. Revistou o outro bolso, acendeu um cigarro e dirigiu-se à saída do escritório. Não olhou para trás, apenas bateu a porta com violência sob o olhar incrédulo e descrente de todos.

Saiu do prédio, comprou uma lata de cerveja na padaria e foi em direção do ponto de ônibus. No caminho, deu uma volta correndo no prédio até a rua de trás, achou o que sobrou do papel higiênico que havia jogado pelo vitrô. Jogou num cesto de lixo e foi embora, a pé.

domingo, 20 de setembro de 2009

Cerveja para nada.


♣ Victor Marques



Uma tarde de sexta como qualquer outra. Nem frio e nem calor de mais, o sol já estava na altura da janela da sala e eu lia qualquer coisa sentado no sofá. A idéia de passar a noite lá me irritava. Estava na expectativa do telefone tocar e ser convidado para tomar umas . Cinco horas da tarde e nada. Mas não tive que esperar muito, um amigo meu me ligou e disse:

-Victor, vamos tomar umas?

-Claro, me encontre em meia hora no Gago.

-Estarei lá.

Desliguei. Fiquei feliz, há tempos não via o Gago, ele era o dono do bar que freqüentava, era um sujeito muito boa gente, mesmo sendo evangélico, nos atendia muito bem. Era um sujeito baixo, moreno, passava dos quarenta anos. Seu bar era agradável, apesar de estar sempre imundo e fedendo a gordura. Lá o forte não era a venda de bebidas e sim comida. Talvez por isso fosse tão agradável beber lá. Ele não sabia servir doses, sempre colocava meio copo grande com rum pela metade por uma módica quantia.

Cheguei primeiro, cumprimentei o Gago, ele demorou cerca de cinco minutos para fazer o mesmo, definitivamente ele fazia jus ao apelido. Não precisei nem pedir, ele logo trouxe um Camel e um cinzeiro de metal já muito queimado. Não tardou para que pedisse uma cerveja e uma dose de rum carta ouro com limão, os dois em copos grandes.

Lá veio ele e colocou um prato com o limão e os copos na minha frente. O bar estava vazio. Apesar de não vender muitas bebidas, sempre havia um ou dois bêbados no balcão. O frentista do posto de gasolina próximo estava lá, entornando seu rabo de galo. Também estavam lá alguns pedreiros que jantavam e um casal com duas crianças que ficavam estourando biribas dentro do bar.

Estava sentado perto do banheiro, onde podia ver o bar inteiro, o balcão prateado com uma estufa cheia de torresmos, pés de galinha, coxinhas.

Meu amigo chegou, a cerveja e o rum já estavam pela metade, tomei o rum de uma só vez e fiz o mesmo com a cerveja que restava no copo. Pedimos mais um copo e mais uma cerveja. Brindamos. Acendi um cigarro e coloquei a cadeira sobre seus pés traseiros, para encostá-la na parede.

Após um curto período a mesa estava ficando cheia, já havíamos tomado oito garrafas e não tínhamos pressa e nem pretensão de parar tão cedo. Versávamos sobre tudo, desde o programa evangélico que era exibido na televisão até Gil Vicente.

O bar estava-se esvaziando, as crianças já tinham ido. Estávamos acompanhados por dois bêbados. De repente entra um casal. Ele já era conhecido da gente, traficava drogas por aqui, mas era inofensivo. Geralmente estava louco com suas próprias drogas. Sua mãe era uma mendiga famosa do bairro. Ela tinha um rosto familiar, mas não me recordava de onde a conhecia. Exibia uma barriga de mãe de sete filhos, uma calça de lycra agarrada, cabelos encaracolados e descoloridos, e sua cara era de puta.

Com sete mesas vazias, eles sentaram bem na que estava do nosso lado, a princípio achei que nos ofereceriam drogas, mas não o fizeram. Pelo contrário, a mulher ficou falando que éramos bonitos e ficou caçando assunto, o que não parecia nos interessar muito.

-Posso pagar uma cerveja para vocês?

-Claro. Respondi.

-É, hoje é sexta, é dia de beber mesmo, não é?

-É, é sim, vamos beber.

Parece que a cerveja grátis tem outro gosto. Bebemos.

-Outra?

-Por que não?

E lá estávamos, nós, bebendo de graça, e eles pagando. Após quatro ou cinco garrafas de graça, meu amigo levantou e foi ao banheiro. Ao voltar disse que precisava ir para casa, jogou uma nota de vinte na mesa e disse que era para pagar as que já tínhamos tomado. Continuei lá sentado, bebendo.

Guardei a nota de vinte na carteira e me despedi do meu amigo. O sujeito que acompanhava a mulher parecia não se importar em bancar as cervejas que eu ainda iria beber. Tomei mais umas três ou quatro quando eles pediram ao dono do bar duas doses de vodca e um copo de suco de laranja. A mulher prontamente perguntou:

-E você, não quer alguma coisa mais forte.

-Um rum com limão.

-Com coca?

-Não, puro.

Eles ficaram um pouco impressionados como bebia aquilo. Depois de duas doses de rum voltei a alternar o rum com cerveja. Até me ofereci para pagar uma cerveja para eles, só para não parecer que queria ficar bêbado as custas deles; Eles recusaram. Ainda bem.

O sujeito se levantou e disse que ia fumar na rua. Sabia muito bem o que queria, cheirar cocaína. Parece que a mulher sabia muito bem disso. Deveria demorar cerca de meia hora. Disse que o bar não tinha o cigarro que ele fumava e se foi.

Pedi licença para a mulher que não me dei ao trabalho de perguntar o nome. Precisava usar o banheiro. Levei minha mochila comigo para não correr o risco de tomar um golpe. Estava dando uma longa urinada quando senti a porta do banheiro se abrindo atrás de mim. Era a mulher.

-Se incomoda se eu ficar um pouco aqui?

-Para ser sincero, não, mas talvez demore um pouco para acabar.

-Não quero usar o banheiro, só vim aqui para olhar.

-Pois deu azar, estou de costas para você.

-Isso não significa que não possa virar.

-Tem razão, mas quem disse que irei virar?

-E todas as cervejas que eu paguei?

-Fico muito agradecido por todas elas.

-Só isso?

-Não vou trepar com você aqui dentro.

-Que tal em outro lugar?

-Não, obrigado, consigo coisa melhor, não achei meu pau no lixo.

Mesmo assim ela ficou atrás de mim até eu acabar. Virei-me antes de fechar a calça, só para não deixá-la a ver navios. Ela observou o gesto calorosamente e começou a retribuí-lo abrindo o zíper de sua calça.

-Nem se dê ao trabalho, não quero nada que você possa ter dentro de sua calcinha.

Ela saiu e eu saí bem atrás, o dono do bar nos fitava com uma cara odiosa, mas sabia que eu não havia feito nada, já tinha me visto com outras mulheres bonitas, no fundo ele sabia que não desperdiçaria meu tempo com ela.

Tomei meu último copo de cerveja antes do par da vagabunda chegar. Paguei as que tinha bebido por minha conta e me despedi do dono do bar.

Atravessei a rua e caminhei até uma loja de conveniência onde também era cliente, pedi outro maço de cigarros e deixei três cervejas pagas.

Fui tomando vagarosamente, acompanhadas de muitos cigarros, aliviado de não ter fodido aquela piranha no banheiro do bar. Ou em qualquer outro lugar.

Quando eram quase duas da manhã, minhas cervejas já tinham acabado. Olhei para o maço de cigarros, tinha o suficiente. Fui até o balcão e pedi mais duas, uma que pagaria e a outra acertaria no outro dia.

Sentei-me na mesa do lado de fora e tomei as duas cervejas muito rapidamente. Enquanto estava na metade da segunda observei uma mulher de uns quarenta e cinco anos se aproximando, nunca a tinha visto por ali, não era feia, tampouco bonita, usava uma calça jeans folgada e uma jaqueta preta. Entrou na loja e saiu com uma cerveja. Pediu-me o isqueiro emprestado. Acendi o cigarro para ela e começamos a conversar sobre qualquer bobagem.

-Posso pagar uma cerveja para você?

-Claro. Respondi.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Fim

♦ Rafael S.M.F

O que foi que aconteceu? Por que eu estou no chão? Estou com o rosto colado no asfalto, está muito quente. Vários pés estão se aproximando de mim... Não consigo olhar pra cima...
O que é isso? Alguém está gritando. Mais pés estão aparecendo em volta de mim...
Essa é a voz da Renata gritando! Por que você está gritando? Eu não consigo falar nada. Alguém me explique o que está acontecendo, por favor! Não consigo me mexer nem falar!
Alguém está me pegando pelo ombro e me virando pra cima. Meu Deus! O Sol está terrível hoje. Não consigo enxergar...
O rosto de Renata surge sobre mim, tapando a luz do Sol. Ela está em prantos, desesperada. Está gritando, mas não consigo entender o que diz.
Os meus olhos aos poucos estão se acostumando com a luz, agora reconheço a rua.
Os rostos estão tomando forma - muitas pessoas - porque elas estão me olhando?
Estou me lembrando agora, estávamos saindo do shopping e estávamos brigando. Não lembro o motivo, mas faz tempo que brigamos por tudo. Assim são os casais, não suporto muitas coisas nela, mas prefiro ficar com ela do que sozinho. Ela estava reclamando de alguma coisa quando ouvi um estouro abafado. Tudo ficou branco e eu acordei aqui, no chão.
As vozes estão ficando mais claras, mas são tantas que não consigo entender o que estão dizendo. Só consigo entender os gritos de Renata “Acorda! Acorda!” ela olha para os lados e grita “Chama uma ambulância caralho!” e depois chora. Aconteceu alguma coisa séria comigo.
Agora consigo sentir meus braços - apenas os braços - estão queimando no asfalto quente, mas não consigo movê-los. Estou começando a sentir uma dor terrível nas costas. Acho que é nas costas, não consigo saber exatamente onde é. Mas está doendo e ardendo muito agora. Meu braços estão ficando molhados. Consigo mover a cabeça um pouco para o lado e olhar de esguelha. Uma poça de sangue está se formando embaixo de mim. Agora estou sentindo uma dor mais forte. Por dentro, uma dor que vai das costas até a costela.
Meu Deus do céu, o que está acontecendo? Quero gritar e perguntar, mas não consigo mexer a boca. Todos estão parados, me olhando. Saiam daqui! Vão buscar ajuda! Filhos da puta! Alguma coisa terrível aconteceu comigo e vocês estão aí, parados! ISSO NÃO É UM SHOW!! ME AJUDEM!!
Meu Deus, me ajude... preciso de ar...
O calor agora está ficando insuportável, a Renata não está mais do meu lado, mas a escuto gritando com alguém, não entendo o que ela está falando...
Deve ter sido um tiro - só pode ser - uma bala perdida ou coisa assim.
Estou me sentindo pior agora... Uma sensação estranha... Fraqueza terrível, vontade de dormir...

Ah! Lembro quando eu saia com meu pai, eu era criança, passávamos por essa avenida e eu queria todos os bonecos de todos os heróis possíveis. Eles ficavam na vitrine das lojas e eu queria todos. Mas ele nunca me dava nenhum. Eu o odiava por isso, mas depois compreendi que ele não tinha dinheiro. Pai, você está aqui? Faz tempo que não vejo você e a mãe. Desculpe, desculpe. Prometo que vou à casa de vocês quando sair daqui. Prometo, dessa vez vou mesmo.

Renata me dá um tapa na cara. Grita pra eu ficar acordado, mas não agüento. Meu corpo está molhado e queimando no chão. Não consigo me mexer. As imagens estão ficando disformes de novo.
Algumas pessoas estão indo embora e outras estão aparecendo. Não sei se são homens ou mulheres, não sei o que elas querem. Algumas delas falam com Renata e tentam falar comigo, mas não consigo fazer nada. Estou cansado, vão embora...

Eu, Thiago e Tatiana éramos as únicas crianças da rua. Nossos pais não nos deixavam sair com medo dos carros e dos traficantes de órgãos. Sempre diziam que iam nos raptar para vender nossos órgãos. Mas mesmo assim, era tão legal, nunca mais falei com eles Thiago e Tatiana. Como será que eles estão? Onde será que eles estão...

Renata me dá outro tapa, ela está desesperada. Renata, como eu te amo, e só brigamos. Talvez não sejamos um casal ideal. Provavelmente deveríamos estar com outras pessoas, ou sozinhos. Mas passei tantos momentos bons com você. Você me ajudou a ser o que sou e, no entanto, brigamos sempre. Mas agora, essas lágrimas mostram que você gosta de mim, pelo menos um pouco. Gostaria de retribuir. Juro que gostaria, mas não consigo. Não consigo falar nada. Brigamos tanto. Nunca falei o quanto você foi importante pra mim. Queria falar agora, mas não consigo, não consigo...
Meu Deus, por que isso aconteceu?
Deus?
Acho que ele não me ouve, ou não quer ouvir. Ou simplesmente, não está.
Renata continua me balançando. Estou ouvindo os gritos dela, mas estão muitos distantes...

Lembro da época de escola, eu odiava, mas passei tantos momentos bons lá, o que será que aconteceram com aquelas pessoas? Sinto saudades agora.
Letícia, você foi a primeira garota que eu beijei, foi tão engraçado, e tão bom...
Você era uma boa amiga, mas um dia se mudou e não nos falamos mais. Queria saber como você está.

Renata continua gritando. Ouço sirenes agora, finalmente. Mas acho que é tarde. Perdão, eu não queria fazer você sofrer. Eu sei que já fiz antes, mas eu te amo, eu juro. Queria poder dizer isso pra você agora. Pra você e pra todos que fizeram parte da minha vida, mas é tarde demais...

Aqueles dias no bar com o pessoal eram tão legais, só falávamos besteira, todos eram amigos ali, naquele momento. Apenas naquele momento, mas eram amigos.

Acho que estou piorando.

A sirene está ficando mais alta, mas agora é tarde. Tarde demais. Me arrependo tanto agora... tantas coisas que deixei de fazer, de dizer...
Renata, queria poder abraçar você, beijar você, dizer que te amei. Dizer adeus.
Está tudo ficando cada vez mais disforme, não sinto meu corpo. Perdoe-me, por favor, perdoe. Não vou poder atender ao pedido de seus gritos. Ainda consigo escutá-los. Eles estão ficando cada vez mais distantes.

“Não vá embora, não vá!”

Eu sei que você vai sofrer. Algumas pessoas vão. Mas todos vão se acostumar. Sempre se acostumam. Logo serei uma lembrança distante, como um sonho. É assim que minha vida aparece pra mim agora. Um sonho distante.
A vida de vocês será igual sem mim. Talvez melhor. Gostaria de ter feito mais. Poderia te feito tantas coisas por vocês. Por vocês e por mim, mas não fiz nada. Não fiz nada.

Pai, mãe, eu ia visitar vocês. Eu juro. Letícia. Renata. Thiago. Tatiana. Perdão. Eu não fiz nada, nada... Agora é tarde demais...

Ainda escuto as sirenes. Ainda escuto...


“Não vá embora!! Não!”







tarde demais...

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Confabulando com Marvin - pt.I

♥ Vitor Furioso

"As baratas apareceram sobre a face da terra há aproximadamente 400 milhões de anos e são, sem dúvida, alguns dos insetos mais conhecidos e causadores de repulsa nos seres humanos desde os seus primórdios".


PARTE 01 - O ENCONTRO.


O que fazer em um domingo à noite? Poucas opções, quase nenhum amigo, muitas frustrações, nenhuma disposição. A única coisa que tenho em excesso na minha casa é cerveja, então o jeito é desfruta-la, e é isso que vou fazer.

É incrível a quantidade de porcarias que a televisão produz, atrações desprezíveis e fúteis, que só fazem o povo admirar quem teve muita sorte na vida, e esquecer que amanhã estarão lá novamente, passando seus crachás e aguentando desaforos em troca de um salário de fome. Eu não me excluo deste grupo, mas a diferença é que, não fujo da realidade através da tela de uma televisão... para isso existe a cerveja, e falando nisso, vou beber mais uma.
Já estava na sexta lata de cerveja, morava sozinho, a música e a bebida me faziam companhia há anos, isso sem falar nas baratas, bichos nojentos.

A casa estava bastante empoeirada naquele dia, fazia um mês que eu não a limpava, a mancha de vinho, que derrubei no piso de tacos na semana passada, ainda estava lá, dando um toque especial àquela decoração feita com móveis antigos, deformados, que recebi dos parentes. Ao invés de jogarem fora o que não iriam mais utilizar, me davam, e eu recebia de bom grado, se não achasse utilização para aquilo, eu mesmo descartava. Muitas vezes doava para o meu vizinho de frente, que pegava tudo o que é porcaria que deixavam em sua porta, o desgraçado fazia uma fogueira com tudo aquilo, como fez com aquela cama que quebrou aqui em casa, enquanto trepava com Tânia, a biscate pulava feito uma cabrita no cio, destruiu a minha cama favorita, mas valeu à pena, foi uma trepada maravilhosa em uma noite atípica em minha rotina.

(Cacete! Derrubei a cerveja no chão!)
Enquanto me dirigia à cozinha para pegar outra latinha, ouvi uma voz muito fina e estridente, resmungando. Parei por um momento, será que estava bêbado demais? Não! A voz estava lá, e agora conseguia entender o que dizia:

- Porra, de novo esse pau d`agua me fez essa merda!
- CARALHO!
- Estou ensopado de cerveja agora!
- PUTAQUEPARIU! QUEM ESTÁ AÍ?!

Aquela voz parecia que vinha de todos os lados da sala, e entrava em meus ouvidos de forma estridente, mas eu não conseguia identificar de onde ela vinha, achei que estava ouvindo coisas, e por um breve instante, até desisti de ir pegar outra lata de cerveja, mas me diriji até a geladeira e abri outra lata de Antárctica, afinal de contas, eu devia estar delirando.

Todo trabalhador conhece os efeitos de uma noite de domingo.

Voltei para a sala, deitei no sofá, já eram oito e meia da noite, acabou sendo inevitável pensar na cara das pessoas que iria encontrar amanhã pela manhã. O Moreira e aquele terno marrom, todo engomadinho e com cara de veado, tenho uma vontade enorme de xinga-lo, de falar em sua cara tudo o que acho daquele seu jeitinho politicamente correto de ser, mas... melhor pensar em Suzana e sua arrogância, a menina tem o rei na barriga, e não consigo entender o motivo, deve ser uma forma de camuflar sua frustração. A única coisa que aprecio nesta garota são seus seios maravilhosos, chego a sonhar com eles. É complicado, muito complicado ter de passar 9 horas por dia com pessoas assim desagradáveis, mas para não ficar sem sua moral (e suas cervejas), temos de aguentar.

E então, aquela voz fina e estridente volta a surgir em meus ouvidos:
- Cara, hoje você está insuportável!
Que estranho, desta vez senti uma certa moleza nesta voz, como se estivesse embriagada...
- QUEM É, PORRA?!
- Quem você acha que é?! Quem mora aqui além de você?
- NINGUÉM! EU MORO SOZINHO, CACETA!

Acho melhor mudar a marca da cerveja, que coisa estranha!
Olhei a data de validade no fundo da lata, ainda estava dentro do prazo. Passei a andar em volta da mesinha de centro da sala, alguns tacos do piso estavam soltos, tropecei em um deles e fui ao chão. A lata voou no sofá, era a segunda cerveja que eu desperdiçava em menos de uma hora, porra!

Resolvi permanecer deitado, na posição como caí, e então, dormir... engano.
Bem em frente ao meu rosto, eu a vi alí parada, me encarando. Eu nunca havia visto uma dessas de tão perto. Era realmente um animal asqueroso, por um breve momento cheguei a lembrar da mãe de uma amiga minha, Dona Flora, definitivamente não conseguia dizer qual criatura era mais horrenda, Dona Flora, ou esta barata parada aqui, pertinho de meu nariz?!

- Cara, você está horrível!
Cacete, era só o que me faltava, ter de ouvir isso de uma barata! BARATA?!
Levantei depressa, e não acreditava no que estava acontecendo, aquela voz estridente era de uma barata?!
- Cuidado! Vai acabar pisando em mim!
Acho melhor eu parar de ler esses livros de terror, estou vendo coisas!
- O que há com você hoje? Não estou te reconhecendo!
- Olha, não tive um final de semana muito bom, no final das contas, estou aqui é afogando as mágoas. (Minha nossa, estou conversando com uma barata!)
- Olha, se quiser conversar...
- Eu não vou ficar aqui levando isto a sério!
- Cara, você tem noção de que já inundou minha casa com bebidas alcóolicas 3 vezes nas últimas duas semanas?! E foi por isso que resolvi vir aqui falar contigo, acho que estou gostando disso.
- Gostando do quê?
- Das bebidas, cara!

Ah não... é melhor eu ir dormir, uma barata bêbada era tudo o que me faltava!

- Pô, cara! Não vá embora, eu existo mesmo, olha eu aqui na sua frente!
Não podia acreditar naquilo, amanhã deverá ser um dia muito melhor para mim, é melhor eu ir dormir.
Rodando de um lado para o outro na cama, não conseguia esquecer aquela situação. Me levantei e tomei um banho frio, o efeito do álcool diminuiu.
Não resisti, me dirigi novamente à sala, e chamei pela barata, não houve resposta, menos mal.
Ainda não convencido, me dirigi à cozinha novamente, abri uma lata de cerveja, tomei apenas um gole, o resto eu joguei no chão, no mesmo lugar de onde a barata havia saído anteriormente. O líquido escorria pelo vão existente entre um taco e outro do piso, alí claramente havia um buraco. Esperei alguns instantes, e nada da barata, definitivamente me convenci de que aquilo não havia passado de um sonho esquisito.
Joguei a lata de cerveja no lixo, e quando estava me dirigindo novamente à minha cama, aquela vozinha estridente entra como uma lâmina em meus ouvidos, dizendo:

- SEU FILHO DA PUTA!

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Um domingo qualquer

♠ Rodrigo Bersogli

A tarde estava abafada. Vozes indiferentes reverbavam pelo nefasto recinto, e o ar seco cada vez mais oprimia as gargantas. Ali, no fundo do bar, Juarez tentava não prestar atenção nem nas pessoas do balcão, nem na pequena televisão mal sintonizada que ficava disposta acima da prateleira de peculiares garrafas de aguardente com toda a sorte de pequenos animais peçonhentos dentro delas. Pobres animais. Pobre Juarez.

Oito cervejas haviam ido. Trinta e uma prestações estavam por vir. Que melhor maneira de prender um homem às rédeas do conformismo do que suaves prestações mensais em dinheiro, alento e obrigações?

Era domingo, dia em que habitualmente Juarez comia frango. Mas não naquele. Não, dessa vez ele mal podia pensar em comida. O desânimo que havia se instaurado em sua alma o destituiu de qualquer desejo gastronômico. Desde a véspera, apenas copos e cigarros tocavam seus lábios. Desde a véspera, quando havia saído do trabalho de vigia num antigo prédio na Praça da República. Ao entregar o posto para o colega que o substituiria no período noturno, Juarez caminhou para o seu apartamento alugado, na Rua Aurora, de cabeça baixa e mãos nos bolsos da puída calça social azul marinho. Entregou o turno. Aos poucos, estava entregando também os pontos.

O ruído da televisão mal sintonizada estava aumentando. Juarez desviou seu olhar para o aparelho e viu que começaria o futebol. Havia uma mulher gorda, morena, de cabelo crespo e curto sentada no balcão. Usava short de cotton azul, lábios fortemente pintados de um vermelho vivo e aparentava ter passado dos cinqüenta. Ria desenfreadamente enquanto um homem da mesma faixa etária, trajando uma surrada camisa social branca e barba de três dias por fazer enchia-lhe o copo repetidas vezes. Sem saber qual dos dois espetáculos comuns era mais grotesco, Juarez voltou a trabalhar em sua garrafa.

Qual caminho havia trilhado para chegar até ali? Onde tinha errado? Teria sido aos 16, quando deixou o interior do Paraná para trabalhar com o tio em São Paulo? Ou teria sido aos 26, quando percebeu que não adiantava o quanto trabalhasse, sempre estaria com a corda no pescoço? Onde havia se perdido? Bem, agora não importava mais. Estava ali, e não havia saída.

Sentia algo oprimindo seu coração. Não, não era saudade. Ele deixara de sentir saudades há muito tempo, desde que os pais morreram após trabalharem a vida toda na lavoura de café. Dos três irmãos não tinha notícias. Só sabia que, assim como ele, haviam ido para cidades maiores, tentando a sorte. O que ele sentia, de fato, era o vazio. Um vazio voraz, eterno, capaz de devorar cada célula da vitalidade que ainda lhe restara.

Um vazio que o consumia incessantemente, apesar de não saber explicá-lo. Só era capaz de senti-lo. E sentia-o, com muita freqüência.

O futebol concorria com as garrafas entre as preferências no bar. Era incrível como todos ali eram falidos, sendo que julgavam conhecer mais de tática, técnica e histórico dos jogadores em campo do que os próprios narradores e comentaristas da TV. A turba gritava ensandecida a cada lance, e Juarez achou fantástico o fato de nenhum deles estar lá, jogando ou comentando profissionalmente.

Decididamente, ele nunca fora fã de futebol. Assistia por um único propósito: Ter assunto com os outros vigias, clientes e transeuntes do prédio onde trabalhava. Nutria certa simpatia pelo Santos, mas não se emocionava com o jogo. Dessa vez, porém, não fez questão de acompanhar a peleja. Pare ele, de fato, pouco importava. E cada vez mais, importava menos. Não se fez de rogado: Tomou o último gole, entregou duas notas de dez e uma de cinco ao maranhense que atendia no balcão e dirigiu-se à rua.

A tarde já estava sendo extirpada pelo início da noite. Na rua, grupos de jovens homossexuais passavam por ele com a mesma freqüência que mendigos e adolescentes com roupas e cabelos que mais pareciam ter saído de uma mistura de filmes de ficção científica e algum anúncio de revista de vinte anos atrás. Rapazes de corpos musculosos faziam ponto nas esquinas, atrás de velhos ricos, tarados e decrépitos que abundavam na região. No coração de São Paulo, Juarez sentiu-se como se estivesse no zoológico, na zona sul da cidade.

No caminho para seu pequeno apartamento, cruzou um misto de boate e teatro erótico que ficava em sua rota habitual. Na porta, anúncios de garotas famosas no circuito do lixo paulistano exibiam seus corpos e prometiam prazeres dantescos. Era abril, e as fotos das garotas trajando fantasias de coelhinhas contrastavam com o cheiro insalubre do local. Sem problemas, ele já havia se acostumado. Dividia o andar em que residia com diversas mulheres que trabalhavam nas imediações, e com certa freqüência transitava em tais infeninhos. E isso só fazia aumentar o vazio que já era tão opressor.

Ao chegar à portaria do antigo prédio em que morava, direcionou um furtivo olhar para a mal estruturada academia que ficava no térreo, bem ao lado da portaria. Estava fechada. Ainda bem, pois ele já havia se embriagado da fauna humana que cambaleava e se arrastava na região. Ponto para ele.

Como de costume, entrou no elevador e pressionou quase que automaticamente o botão onde se lia 13º. Um homem magro entrou logo em seguida, apertando o 8º. Suas feições, tão deprimentes e degeneradas, Juarez já conhecia: Era usuário de crack e já havia vendido quase toda a mobília e eletrodomésticos para alimentar o vício. Juarez até havia adquirido um liquidificador do odioso personagem por míseros cinco reais, durante uma de suas crises de abstinência. Tudo bem, era o preço a ser pago.

13º andar. O elevador fazia um incômodo ruído e sacolejava ao abrir as portas. Juarez saiu e, lentamente, dirigiu-se para o lado do seu apartamento. O cheiro ocre dos corredores mal iluminados, de uma tonalidade amarelada, pálida e melancólica o fazia cada vez mais sentir vontade de nunca mais voltar ali. Mas ele sempre voltava. Noite após noite. Era como um tributo que havia a ser pago pela sua própria sanidade ao caminho que escolhera trilhar. Escolhera?

O apartamento era pequeno. Logo na entrada, à direita, um banheiro com uma antiga banheira de cimento constituía o único luxo. Em frente, um reduzido tanque que fazia as vezes de pia. No mais, era um quarto rústico, bege, alto e com paredes mofadas. Era como se houvesse salitre ali. Não havia cozinha. Tampouco felicidade.

No quarto, além de uma cama de solteiro feita em madeira, havia um guarda-roupa uma cômoda, uma cadeira, uma pequena estante de arames, uma televisão e um aparelho de DVDs. Tudo cortesia das trinta e uma prestações restantes. Antes de pagar a última, Juarez teria de trocar tudo e fazer novas prestações. Ele sabia. Já tinha passado por isso antes.

Roupas com bastante uso estavam espalhadas desajeitadamente sobre a cadeira. O cinzeiro estava cheio e havia meia garrafa de conhaque sobre a escrivaninha. A única coisa em ordem era o uniforme de trabalho, que Juarez dispunha cuidadosamente em um cabide pendurado na porta do guarda-roupa. Aquela era sua armadura, seu campo de força na batalha diária. Mas agora, mais do que nunca, ele se perguntava: Que batalha? Contra quem? E, o pior: Qual a diferença entre vencer e perder?

Sentou-se na cama, acendeu um cigarro e serviu-se de uma dose de conhaque. Evitava beber aos domingos à noite, mas agora ele realmente precisava daquela dose. Sentia que, naquele momento, a dose do conhaque era mais importante do que um bom descanso para desempenhar bem suas funções profissionais do dia seguinte. Vícios, virtudes e valores. De qual deles você prefere se embriagar hoje?

Pegou o controle remoto e ligou a televisão. A sintonia não era perfeita, mas conseguiu ver quase que nitidamente o apresentador do programa de variedades dominical. Era o típico sujeito que ele não gostaria de ser. Rosado, afável, com jeito de ser o animador das reuniões familiares. Provavelmente tinha fazendas e abusava de garotinhas de quatorze anos, pensou Juarez. Não conseguiu assistir o programa por dois minutos inteiros, trocando para o canal seguinte. Um pastor usando paletó e gravata bradava a uma platéia hipnotizada que apenas Deus era a solução, e que a palavra Dele os livraria de qualquer mal. Façam a vontade Dele e vocês prosperarão, com saúde e fortuna. Mas pera lá, o céu não era o reino dos pobres? Não era mais fácil um camelo entrar num buraco de agulha, ou algo assim, do que um rico entrar no reino dos céus? Além do mais, se Deus tinha uma vontade, é porque ele tinha uma opinião. E se tinha uma opinião é porque era a favor de alguma coisa em detrimento à outra coisa. Se era parcial, não podia ser justo. Se fosse justo, Juarez não estaria ali. Exatamente por não compreender, mudou novamente de canal, antes de aceitar aquilo pelo mesmo motivo.

Outro canal. Esportes. Velhos carcomidos discutiam histericamente a rodada do futebol. Pareciam rançosos e feitos de cera, e tentavam a todo o momento brigar com as imagens reprisadas dos jogos. Era como um teatro de bonecos, mas com propagandas comerciais a cada dez segundos.

Era demais para Juarez. Um sentimento de sufocamento seco entorpeceu sua garganta, e ele já estava no terceiro cigarro e quarto conhaque. Nada daquilo fazia sentido. Para quê acordaria no dia seguinte? Para passar mais um dia, mais uma semana, um mês ou ano sem mesmo saber o motivo de estar ali? Para continuar alimentando uma esperança que ele nem mesmo possuía? Não fazia sentido. Nada fazia.

Emborcou todo o conhaque de uma vez. O líquido desceu quente, fazendo-o suar. Tragava seu cigarro nervosamente, e suas mãos trêmulas foram levadas ao rosto. Nenhuma lágrima. Nenhuma emoção. Abriu a janela e encarou a enegrecida e encardida metrópole. Luzes oscilavam na noite paulistana, e cada luz representava uma vida, uma história. Juarez apagou a luz de seu quarto. Não possuía uma vida e nem mesmo uma história para ser representado por aquela luz. Não tinha direito. Talvez as outras pessoas também não tivessem, o que era mais provável. Mas ele não queria mais fingir. Não queria mais a luz, que na verdade nunca havia o iluminado de fato. Não da forma que ele precisava.

A brisa suave que penetrou pela janela atingiu seu rosto como um soco. Transpirava muito e seu coração batia acelerado. Sabia o que tinha de fazer. E queria muito fazer aquilo. Faltava-lhe coragem. Faltava? Coragem era continuar com aquilo, naquela falta de senso e perspectiva. Coragem era preciso para agüentar olhar-se no espelho e não entender o que via. Por isso Juarez evitava seu reflexo. Porque apenas fingia ser corajoso. Na para os outros, mas para si próprio. Viveu fingindo. Mas precisava botar um ponto final naquilo.

Quando subiu no batente da janela, Juarez sentiu-se um deus. Sentiu que podia livrar-se de toda aquela falta de sentido de uma maneira mais rápida e, sem dúvidas, definitiva. A cidade piscava a sua frente com seus semáforos, prédios, carros, ladrões, apresentadores de TV, bêbados, prostitutas, travestis, padres, jogadores de futebol... Não queria mais participar daquele jogo. E não via outra maneira de sair dele.

Sentiu o vento frio ao seu redor quando se deixou cair para frente, em direção às luzes mentirosas que iluminavam vidas de mentira. Ao contrário do que imaginou, não havia nenhum sentimento de liberdade durante a queda. Apenas o sentimento de alívio, de livrar-se de tudo aquilo. Por um breve momento, ele sorriu.

Introdução



This words I write keep me from total madness.
Charles Bukowski.


Centro da cidade. Fim de tarde. Carros e ônibus passam sem parar. Pessoas voltando pra casa do trabalho e outras saindo de casa, para o trabalho. Um ciclo vicioso e doentio. Pessoas que perdem sua vida e sua mente aos poucos, sem saberem. Pessoas com esperanças vazias e distantes. Esperanças mortas.
Ao redor desse ritual incessante e impiedoso, bares e botecos de toda espécie se transformam em verdadeiros refúgios. Um espaço para se entorpecer e esquecer um pouco a realidade decadente que nos cerca e que fazemos parte. A realidade decadente que ajudamos a construir.
Em um desses esconderijos, quatro rapazes discutem sobre os mais variados assuntos, porém com alguma consciência do terror que os cerca.
Entre muitas cervejas e muitas idéias, surge esta que se apresenta. Um blog onde essas quatro mentes vão despejar suas idéias e seus sentimentos. Um grito ao mundo, para quem quiser ouvir.
Aproveite, com certeza não será (mais uma) perda de tempo.