quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Filosofia de Privada

♠ Rodrigo Bersogli

20h47. O horário do expediente já havia há muito se encerrado, mas Araújo ainda estava no escritório. Era uma quarta-feira, e ele precisava fechar um balanço contábil urgentemente.

Funcionário dedicado, exemplar. Almejava há muito tempo uma promoção, e agora que percebia a iminência de consegui-la, não podia fraquejar. Havia se colocado à disposição para fechar o tal balanço, e nada iria impedi-lo. Nada. Nem mesmo as três horas que já estava dedicando além do seu horário habitual.

O trabalho em si não era difícil, mas exigia do contador uma atenção acima do normal. Qualquer erro poderia comprometer o resultado do balanço, e isso era tudo o que ele não queria. Precisava mostrar eficiência ao Seu Constantino, o dono do escritório. Se conseguisse aquela promoção, boa parte de seus problemas financeiros estariam resolvidos. Portanto, não havia tempo para descanso. Sabia que mais uma hora ali e tudo estaria pronto, como planejara.

O escritório estava absolutamente vazio. Todos os outros funcionários haviam ido embora às 17h30, como de costume. Araújo se sentia ainda mais livre para trabalhar sem toda aquela gente falando ao seu redor, e essa sensação de liberdade o fazia produzir mais e melhor. Havia até tirado os sapatos e afrouxado o cinto, e estava espantado com o progresso que tinha feito com o balanço. Era incrível como se sentia bem ali, sem a presença de todos. Sem a pressão cotidiana. Sem o telefone tocando irritantemente, sem o Seu Constantino esbravejando a todo o momento, sem o Souza lamentando sua falta de sorte com as mulheres que conhecia via internet. Aquele silêncio era revigorador.

Sentia-se em casa. Afinal, passava mais tempo ali, enfurnado naquele escritório, do que em sua própria residência. Expedientes de 12, 13 horas por dia haviam se tornado rotina para ele nesses últimos meses. Passara sábados e feriados também ali em algumas ocasiões, mas não reclamava. Tinha um emprego que lhe pagava aluguel, comida, telefone, internet, água e luz. Custeava também sua cerveja e encontros com mulheres, afinal ele não era de ferro. Ninguém era. Aquele salário não era dos melhores, mas bancava sua vida, sem maiores luxos.

Estava tão à vontade que resolveu ir ao banheiro antes de terminar o trabalho. Uma boa cagada, um cigarro e um pouco de água no rosto o deixariam novinho em folha para acabar de vez com o maçante balanço. Não pensou duas vezes: Calçou seus sapatos, pegou um cigarro no maço e dirigiu-se para o pequeno banheiro unissex do escritório.

Fumar ali no banheiro era proibido, mas quem se importaria naquele momento? Estava lá, sozinho. Bastava deixar o vitrô aberto que o cheiro se dissiparia durante a noite. Ele sabia, já havia feito isso muitas vezes. Portanto, logo ao sentar no vaso, já sem calças, acendeu o cigarro e deu uma longa tragada, como se pudesse queimar todos os papéis do maldito balanço com aquela brasa.

'Foi uma boa cagada', pensou. Estava aliviado e pronto para terminar o serviço. Limpou-se, vestiu as calças e deu descarga, mandando tudo por água abaixo, inclusive a bituca do cigarro. Lavou o rosto longamente, se ajeitou na roupa e empurrou a porta para sair. Nada. Não se moveu. Tentou forçar a maçaneta para cima e para baixo, mas a porta permaneceu fechada. Usou mais força e tentou empurrar novamente, mas não obteve sucesso. 'Que merda!', exclamou.

Começou a se sentir impaciente. Agitava incessantemente a maçaneta e forçava a porta em todos os sentidos, mas não conseguia abri-la de forma alguma. Esbravejou, chutou, xingou, empurrou. Nada. Estava emperrada. Araújo estava trancado no banheiro, enfim. Não bastava ter de trabalhar até mais tarde, era preciso mais um entrevero para completar sua desventura.

O escritório localizava-se no 3º andar de um prédio de cinco andares, na zona oeste da capital. Bairro tranquilo, arborizado. O porteiro era o único que ficava lá durante a noite, mas a entrada do prédio era na parte oposta ao escritório. Principalmente ao banheiro, cujo vitrô dava para a rua de trás. Gritar ali não adiantaria, definitivamente. Para decidir o que fazer, o contador sentou-se na privada fechada. Apalpou os bolsos e descobriu que seu celular não estava ali. Havia deixado no bolso do casaco, em sua cadeira. A única coisa que estava em seu bolso era o isqueiro. Droga, nem para trazer o celular ou o resto do maço!

Precisava fazer algo. Não podia ficar ali a noite toda. Tinha o balanço para terminar, tinha que ir para casa, tinha que sair!

O banheiro era minúsculo. Resumia-se a um vaso sanitário ordinário, uma pia, um espelho e azulejos marrons. Um vitrô se erguia na parte traseira, onde havia um cano de chuveiro lacrado. O escritório era um antigo apartamento residencial, e como todos no pequenino prédio, se transformaram em salas comerciais por causa de sua localização privilegiada. Olhando ao redor, Araújo teve uma idéia: Atirar o rolo de papel higiênico para baixo, segurando uma das pontas para indicar a algum transeunte que havia gente ali. A luz estava acesa, e provavelmente era a única no prédio. Seria fácil para alguém identificar aquilo como algo anormal, e havia a esperança de que se alguém visse a cena, pudesse avisar ao porteiro. Era uma tábua de salvação.

Segurando uma das pontas, desenrolou o papel higiênico pelo vitrô e deixou-o rolar para baixo. Não sentiu o peso do rolo na queda, e logo descobriu o motivo: O papel era frágil demais e rompeu-se ao cair. Nesse momento, deveria ter apenas um rolo de papel higiênico barato e áspero rolando pela rua: Seu plano falhara.

Uma fúria tomou conta de sua mente. Atirou-se violentamente contra a porta, e desferiu golpes ininterruptos numa tentativa de derrubá-la. Em vão. Estava emperrada, e Araújo simplesmente não compreendia como aquilo poderia ter ocorrido. Não se recordava de ter batido a porta ao entrar. Como teria ficado trancado ali? Burro, burro, burro! Sentia-se o mais idiota dos seres humanos. Novamente, sentou-se no vaso sanitário fechado e colocou-se a pensar.

'Maldita hora que aceitei fazer esse balanço', murmurou. Já deveria ser tarde, e ele ainda estava ali. Era hora da novela, provavelmente. Ele deveria estar em casa, jantando e assistindo televisão. Depois, era só passar a roupa e assistir ao futebol tomando uma cerveja. Desde que se separou de Márcia, ele próprio lavava e passava suas roupas. Sobrava pouco tempo para sair com os amigos durante a semana, mas era melhor assim. Havia começado a gostar de ver novelas, apesar de contas. Que mal havia?

Araújo não se conformava em ter de ficar a noite toda ali. Porque diabos tinha de passar por aquilo? Estava trabalhando tanto, se dedicando... Se pelo menos fosse como a Sandra, entenderia. Sandra havia entrado no escritório muito depois dele, mas já havia recebido duas promoções. Tinha menos conhecimentos contábeis, mas tinha coxas e seios muito mais atraentes. Principalmente para o Seu Constantino, que tentava disfarçar a todo custo que andava traçando aquela gostosa, escondido. Mas para que disfarçar? No fundo, todos sabiam. Araújo já havia perdido uma promoção para ela, mas não tinha como concorrer com aquele corpo. Era a vida, e por isso ele estava ali naquela noite.

Quando começou a trabalhar no escritório, não pensou que as coisas seriam assim. Tudo parecia novo e promissor, e a possibilidade de ter um emprego fixo e formal o deixou animado. Tanto que não ficou decepcionado ao perder a primeira promoção, pois ele ainda tinha seu salário e pagava suas contas. Afinal, não era esse o objetivo? Pagar as contas? Tudo bem que vez por outra não dava para pagar tudo, mas quem conseguia?

Era engraçado. Estava se dando conta que realmente não tinha tempo para nada, mas estava bem assim. Sentia-se confortável. Mas até que ponto? E o que era o conforto que sentia, afinal? Porque vivendo como estava, não conseguia fazer nada além de trabalhar e cuidar dos afazeres de casa. Como os caras que mudaram o mundo fizeram? Pararam de trabalhar? Deixaram de lavar e passar roupa? Ou eram todos burgueses?

Será que era por isso que forçavam as pessoas a trabalhar 10 horas por dia ou mais, fora o tempo para estudar ou cuidar da casa? Para evitar que pensassem e mudassem as coisas? Será que esse papo de capitalismo era balela? Que a intenção maior por trás de tanta força de trabalho era esgotar as energias das pessoas de tal forma que elas não pudessem se rebelar contra nada, e não apenas encher o mundo de bens de consumo? Bens de consumo esses que as pessoas passariam 10 horas por dia trabalhando para comprar. Que saco.

Um sorriso discreto e desalentador fora esboçado pelo contador.

Talvez seja por isso que as novelas eram todas no horário onde as pessoas já estavam em casa, comendo ou espalhadas no sofá. Quanto tempo durava cada capítulo da novela? Uma hora? Céus, assistir a novela por uma semana era o equivalente a assistir três filmes! Qual seria o sentido em produzir tantas horas e episódios senão hipnotizar, transformando os telespectadores em zumbis funcionais? Já imaginou o quanto as pessoas poderiam ler, pensar, procurar informações ou mesmo discutir assuntos relevantes se não tivessem a novela ou o futebol para ocupar suas horas? Ele tremeu com esse pensamento.

Mas e os revolucionários? Porque a maioria das revoluções recentes foram feitas por estudantes? Será que era porque eles não tinham nada a perder? É, isso foi antes que eles travassem suas próprias revoluções internas, primeiro com o ICQ, depois com o MSN, Orkut, Twitter... Revoluções onde quem perde é o pensamento produtivo, crítico. Para cada informação relevante que eles procuram na internet, são doze horas de improdutividade coletiva sequencial. E viva a inclusão digital. Não seria isso apenas mais uma novela, mas agora nós mesmos éramos os coadjuvantes?

Como um cara que tinha de trabalhar duro durante dez horas por dia, fora o tempo que passa no trânsito ou no transporte coletivo, poderia de fato conceber uma revolta? Como fazer alguém nessa situação pensar em mudar tudo, derrubar os alicerces, se ele tinha de se preocupar em acordar às 05h30 para trabalhar? Ainda mais se, depois do trabalho, ele estivesse tão esgotado que a novela, a cerveja, o futebol ou a internet era tudo o que ele podia desejar?

A idéia de largar tudo e viver na malemolência não parecia tão ruim. Se a vadiagem era um crime, porque a opressão cotidiana não era? Viver de subsistência, em algum campo ou margem de rio era algo que nunca antes havia imaginado, mas que agora o apetecia. Mesmo debaixo de alguma ponte deveria haver mais dignidade do que ali, naquela rotina. Na pior das hipóteses, poderia sumir para algum canto afastado nos confins do país e ali fazer o seu rincão. Quem sabe assim não se encontraria, de fato? Sentiria falta dos amigos e de certos confortos, mas teria coisas inestimáveis: Paz, tempo e oportunidade de entender melhor toda aquela engrenagem onde todos estavam metidos, cada qual com a sua respectiva rosca e parafuso.

Sem se dar conta, Araújo estava fazendo algo que não fazia há tempos: Estava pensando. Ficar naquele banheiro, trancado, o forçou a fazer algo que ele não conseguia fazer sempre. E não estamos falando sobre cagar. Ele estava, pela primeira vez, tentando entender o mecanismo que o aprisionara. Não, não estamos falando sobre a fechadura da porta. Nesse sentido, a fechadura o oprimia menos do que todo o sistema que estava, de fato, prendendo-o. Foi o establishmet quem o trancou, e não uma porta emperrada. Disso ele estava cada vez mais convencido. Mas como sair de tudo isso? Cedo ou tarde, alguém chegaria ao escritório e acabaria abrindo a porta. Mas e a porta do sistema, quando alguém iria abrir?

Desejou muito um cigarro. Mais do que o jantar. Tomou água diretamente da torneira da pia e olhou-se no espelho. Sentia-se arrasado. Haviam acabado com ele, com tanto tempo dedicado a uma causa que nem era sua, por sinal. Mas, desde as últimas horas que passou ali, era como se tivesse voltado a ter alguma noção das coisas, de como estava se arrastando para um buraco que todos cavavam e apenas alguns não caíam. Deu um grito, um grito prolongado e visceral, mas não na tentativa de chamar a atenção de alguém. Estava chamando sua própria atenção, coisa que não fazia há anos.

Lentamente, ele adormeceu. Dormiu sentado no vaso, desconfortável e desajeitado. Teve sonhos estranhos: Estava escalando uma montanha com amigos quando, de repente, surgiu uma avalanche e eles saíram correndo. Depois, estava na escola, em sua sala primária, mas com a idade atual. Fugiu da escola diretamente para casa, e quando percebeu, estava nu. Sonhou também que estava à beira de um lago, descalço, pescando. Mas não pegava peixes. Apenas estava lá, à toa. Por muito, muito tempo. E nenhum peixe. Uma profusão de cores e formas reais davam um brilho especial aos sonhos, e ele mal pode acreditar quando ouviu barulhos que o acordaram. Havia amanhecido!

Esmurrou a porta com todas as forças que possuía. Em instantes, discerniu as vozes do outro lado da porta: Souza, Sandra, Seu Constantino e a faxineira. Como era o nome dela mesmo? Não importa. Gritou e, em poucos momentos, Souza conseguiu desparafusar a antiga maçaneta e destravar a porta. Estava livre!

Logo que saiu do banheiro, viu o rosto confuso de todos. Ainda atônito, pensou em explicar o que havia ocorrido e esclarecer aquele incidente. Porém, a única coisa que saiu da sua boca foi:

- VÃO TOMAR NO CU! ESTÃO OUVINDO? NO CU!

Rapidamente, pegou seu casaco em sua cadeira. Conferiu o celular: Eram 07h38 da manhã. Nenhuma ligação perdida. Revistou o outro bolso, acendeu um cigarro e dirigiu-se à saída do escritório. Não olhou para trás, apenas bateu a porta com violência sob o olhar incrédulo e descrente de todos.

Saiu do prédio, comprou uma lata de cerveja na padaria e foi em direção do ponto de ônibus. No caminho, deu uma volta correndo no prédio até a rua de trás, achou o que sobrou do papel higiênico que havia jogado pelo vitrô. Jogou num cesto de lixo e foi embora, a pé.

5 comentários:

  1. Caralho! Muito Bom, definiu muito bem a desgraça que é o Mercado de Trabalho que nos obrigam fazer parte, morrendo a cada dia sem se dar conta.
    Abraços.

    ResponderExcluir
  2. Ótimo! Realidade nua e crua! Araújo fez o que muitos têm vonatade de fazer, mas muitas vezes nem se dão conta, pois precisam trabalhar.

    ResponderExcluir
  3. Pior se ele tivesse que ficar ate a segunda feira!!! Esses contos abrem mesmo a nossa mente, é impossivel não se relacionar com algum deles!!!

    ResponderExcluir
  4. Uau! Ficção urbana da melhor qualidade! O homem moderno X o absurdo cotidiano!

    ResponderExcluir
  5. vc tem muito talento! invista nisso ;D beijão

    ResponderExcluir