sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Um domingo qualquer

♠ Rodrigo Bersogli

A tarde estava abafada. Vozes indiferentes reverbavam pelo nefasto recinto, e o ar seco cada vez mais oprimia as gargantas. Ali, no fundo do bar, Juarez tentava não prestar atenção nem nas pessoas do balcão, nem na pequena televisão mal sintonizada que ficava disposta acima da prateleira de peculiares garrafas de aguardente com toda a sorte de pequenos animais peçonhentos dentro delas. Pobres animais. Pobre Juarez.

Oito cervejas haviam ido. Trinta e uma prestações estavam por vir. Que melhor maneira de prender um homem às rédeas do conformismo do que suaves prestações mensais em dinheiro, alento e obrigações?

Era domingo, dia em que habitualmente Juarez comia frango. Mas não naquele. Não, dessa vez ele mal podia pensar em comida. O desânimo que havia se instaurado em sua alma o destituiu de qualquer desejo gastronômico. Desde a véspera, apenas copos e cigarros tocavam seus lábios. Desde a véspera, quando havia saído do trabalho de vigia num antigo prédio na Praça da República. Ao entregar o posto para o colega que o substituiria no período noturno, Juarez caminhou para o seu apartamento alugado, na Rua Aurora, de cabeça baixa e mãos nos bolsos da puída calça social azul marinho. Entregou o turno. Aos poucos, estava entregando também os pontos.

O ruído da televisão mal sintonizada estava aumentando. Juarez desviou seu olhar para o aparelho e viu que começaria o futebol. Havia uma mulher gorda, morena, de cabelo crespo e curto sentada no balcão. Usava short de cotton azul, lábios fortemente pintados de um vermelho vivo e aparentava ter passado dos cinqüenta. Ria desenfreadamente enquanto um homem da mesma faixa etária, trajando uma surrada camisa social branca e barba de três dias por fazer enchia-lhe o copo repetidas vezes. Sem saber qual dos dois espetáculos comuns era mais grotesco, Juarez voltou a trabalhar em sua garrafa.

Qual caminho havia trilhado para chegar até ali? Onde tinha errado? Teria sido aos 16, quando deixou o interior do Paraná para trabalhar com o tio em São Paulo? Ou teria sido aos 26, quando percebeu que não adiantava o quanto trabalhasse, sempre estaria com a corda no pescoço? Onde havia se perdido? Bem, agora não importava mais. Estava ali, e não havia saída.

Sentia algo oprimindo seu coração. Não, não era saudade. Ele deixara de sentir saudades há muito tempo, desde que os pais morreram após trabalharem a vida toda na lavoura de café. Dos três irmãos não tinha notícias. Só sabia que, assim como ele, haviam ido para cidades maiores, tentando a sorte. O que ele sentia, de fato, era o vazio. Um vazio voraz, eterno, capaz de devorar cada célula da vitalidade que ainda lhe restara.

Um vazio que o consumia incessantemente, apesar de não saber explicá-lo. Só era capaz de senti-lo. E sentia-o, com muita freqüência.

O futebol concorria com as garrafas entre as preferências no bar. Era incrível como todos ali eram falidos, sendo que julgavam conhecer mais de tática, técnica e histórico dos jogadores em campo do que os próprios narradores e comentaristas da TV. A turba gritava ensandecida a cada lance, e Juarez achou fantástico o fato de nenhum deles estar lá, jogando ou comentando profissionalmente.

Decididamente, ele nunca fora fã de futebol. Assistia por um único propósito: Ter assunto com os outros vigias, clientes e transeuntes do prédio onde trabalhava. Nutria certa simpatia pelo Santos, mas não se emocionava com o jogo. Dessa vez, porém, não fez questão de acompanhar a peleja. Pare ele, de fato, pouco importava. E cada vez mais, importava menos. Não se fez de rogado: Tomou o último gole, entregou duas notas de dez e uma de cinco ao maranhense que atendia no balcão e dirigiu-se à rua.

A tarde já estava sendo extirpada pelo início da noite. Na rua, grupos de jovens homossexuais passavam por ele com a mesma freqüência que mendigos e adolescentes com roupas e cabelos que mais pareciam ter saído de uma mistura de filmes de ficção científica e algum anúncio de revista de vinte anos atrás. Rapazes de corpos musculosos faziam ponto nas esquinas, atrás de velhos ricos, tarados e decrépitos que abundavam na região. No coração de São Paulo, Juarez sentiu-se como se estivesse no zoológico, na zona sul da cidade.

No caminho para seu pequeno apartamento, cruzou um misto de boate e teatro erótico que ficava em sua rota habitual. Na porta, anúncios de garotas famosas no circuito do lixo paulistano exibiam seus corpos e prometiam prazeres dantescos. Era abril, e as fotos das garotas trajando fantasias de coelhinhas contrastavam com o cheiro insalubre do local. Sem problemas, ele já havia se acostumado. Dividia o andar em que residia com diversas mulheres que trabalhavam nas imediações, e com certa freqüência transitava em tais infeninhos. E isso só fazia aumentar o vazio que já era tão opressor.

Ao chegar à portaria do antigo prédio em que morava, direcionou um furtivo olhar para a mal estruturada academia que ficava no térreo, bem ao lado da portaria. Estava fechada. Ainda bem, pois ele já havia se embriagado da fauna humana que cambaleava e se arrastava na região. Ponto para ele.

Como de costume, entrou no elevador e pressionou quase que automaticamente o botão onde se lia 13º. Um homem magro entrou logo em seguida, apertando o 8º. Suas feições, tão deprimentes e degeneradas, Juarez já conhecia: Era usuário de crack e já havia vendido quase toda a mobília e eletrodomésticos para alimentar o vício. Juarez até havia adquirido um liquidificador do odioso personagem por míseros cinco reais, durante uma de suas crises de abstinência. Tudo bem, era o preço a ser pago.

13º andar. O elevador fazia um incômodo ruído e sacolejava ao abrir as portas. Juarez saiu e, lentamente, dirigiu-se para o lado do seu apartamento. O cheiro ocre dos corredores mal iluminados, de uma tonalidade amarelada, pálida e melancólica o fazia cada vez mais sentir vontade de nunca mais voltar ali. Mas ele sempre voltava. Noite após noite. Era como um tributo que havia a ser pago pela sua própria sanidade ao caminho que escolhera trilhar. Escolhera?

O apartamento era pequeno. Logo na entrada, à direita, um banheiro com uma antiga banheira de cimento constituía o único luxo. Em frente, um reduzido tanque que fazia as vezes de pia. No mais, era um quarto rústico, bege, alto e com paredes mofadas. Era como se houvesse salitre ali. Não havia cozinha. Tampouco felicidade.

No quarto, além de uma cama de solteiro feita em madeira, havia um guarda-roupa uma cômoda, uma cadeira, uma pequena estante de arames, uma televisão e um aparelho de DVDs. Tudo cortesia das trinta e uma prestações restantes. Antes de pagar a última, Juarez teria de trocar tudo e fazer novas prestações. Ele sabia. Já tinha passado por isso antes.

Roupas com bastante uso estavam espalhadas desajeitadamente sobre a cadeira. O cinzeiro estava cheio e havia meia garrafa de conhaque sobre a escrivaninha. A única coisa em ordem era o uniforme de trabalho, que Juarez dispunha cuidadosamente em um cabide pendurado na porta do guarda-roupa. Aquela era sua armadura, seu campo de força na batalha diária. Mas agora, mais do que nunca, ele se perguntava: Que batalha? Contra quem? E, o pior: Qual a diferença entre vencer e perder?

Sentou-se na cama, acendeu um cigarro e serviu-se de uma dose de conhaque. Evitava beber aos domingos à noite, mas agora ele realmente precisava daquela dose. Sentia que, naquele momento, a dose do conhaque era mais importante do que um bom descanso para desempenhar bem suas funções profissionais do dia seguinte. Vícios, virtudes e valores. De qual deles você prefere se embriagar hoje?

Pegou o controle remoto e ligou a televisão. A sintonia não era perfeita, mas conseguiu ver quase que nitidamente o apresentador do programa de variedades dominical. Era o típico sujeito que ele não gostaria de ser. Rosado, afável, com jeito de ser o animador das reuniões familiares. Provavelmente tinha fazendas e abusava de garotinhas de quatorze anos, pensou Juarez. Não conseguiu assistir o programa por dois minutos inteiros, trocando para o canal seguinte. Um pastor usando paletó e gravata bradava a uma platéia hipnotizada que apenas Deus era a solução, e que a palavra Dele os livraria de qualquer mal. Façam a vontade Dele e vocês prosperarão, com saúde e fortuna. Mas pera lá, o céu não era o reino dos pobres? Não era mais fácil um camelo entrar num buraco de agulha, ou algo assim, do que um rico entrar no reino dos céus? Além do mais, se Deus tinha uma vontade, é porque ele tinha uma opinião. E se tinha uma opinião é porque era a favor de alguma coisa em detrimento à outra coisa. Se era parcial, não podia ser justo. Se fosse justo, Juarez não estaria ali. Exatamente por não compreender, mudou novamente de canal, antes de aceitar aquilo pelo mesmo motivo.

Outro canal. Esportes. Velhos carcomidos discutiam histericamente a rodada do futebol. Pareciam rançosos e feitos de cera, e tentavam a todo o momento brigar com as imagens reprisadas dos jogos. Era como um teatro de bonecos, mas com propagandas comerciais a cada dez segundos.

Era demais para Juarez. Um sentimento de sufocamento seco entorpeceu sua garganta, e ele já estava no terceiro cigarro e quarto conhaque. Nada daquilo fazia sentido. Para quê acordaria no dia seguinte? Para passar mais um dia, mais uma semana, um mês ou ano sem mesmo saber o motivo de estar ali? Para continuar alimentando uma esperança que ele nem mesmo possuía? Não fazia sentido. Nada fazia.

Emborcou todo o conhaque de uma vez. O líquido desceu quente, fazendo-o suar. Tragava seu cigarro nervosamente, e suas mãos trêmulas foram levadas ao rosto. Nenhuma lágrima. Nenhuma emoção. Abriu a janela e encarou a enegrecida e encardida metrópole. Luzes oscilavam na noite paulistana, e cada luz representava uma vida, uma história. Juarez apagou a luz de seu quarto. Não possuía uma vida e nem mesmo uma história para ser representado por aquela luz. Não tinha direito. Talvez as outras pessoas também não tivessem, o que era mais provável. Mas ele não queria mais fingir. Não queria mais a luz, que na verdade nunca havia o iluminado de fato. Não da forma que ele precisava.

A brisa suave que penetrou pela janela atingiu seu rosto como um soco. Transpirava muito e seu coração batia acelerado. Sabia o que tinha de fazer. E queria muito fazer aquilo. Faltava-lhe coragem. Faltava? Coragem era continuar com aquilo, naquela falta de senso e perspectiva. Coragem era preciso para agüentar olhar-se no espelho e não entender o que via. Por isso Juarez evitava seu reflexo. Porque apenas fingia ser corajoso. Na para os outros, mas para si próprio. Viveu fingindo. Mas precisava botar um ponto final naquilo.

Quando subiu no batente da janela, Juarez sentiu-se um deus. Sentiu que podia livrar-se de toda aquela falta de sentido de uma maneira mais rápida e, sem dúvidas, definitiva. A cidade piscava a sua frente com seus semáforos, prédios, carros, ladrões, apresentadores de TV, bêbados, prostitutas, travestis, padres, jogadores de futebol... Não queria mais participar daquele jogo. E não via outra maneira de sair dele.

Sentiu o vento frio ao seu redor quando se deixou cair para frente, em direção às luzes mentirosas que iluminavam vidas de mentira. Ao contrário do que imaginou, não havia nenhum sentimento de liberdade durante a queda. Apenas o sentimento de alívio, de livrar-se de tudo aquilo. Por um breve momento, ele sorriu.

6 comentários:

  1. Ha ha/ Nós somos a blank generation. Nosso destino destino é chafurdar na lama da entropia (Kali Yuga)

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  2. Curti muito essa história!
    Juarez, assim como nós, vivia na terra onde vizinhos são estranhos. Quantos outros não são iguais?

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  3. Muito bem escrito, o Juarez é um personagem que aparece na vida de todos nós, mas não damos atenção. (Isso se não estivermos fazendo o papel dele).

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  4. Parabéns, velho!
    Muito bom o texto... a cada parágrafo, conseguia visualizar a história.

    Abraço1

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