quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Fim

♦ Rafael S.M.F

O que foi que aconteceu? Por que eu estou no chão? Estou com o rosto colado no asfalto, está muito quente. Vários pés estão se aproximando de mim... Não consigo olhar pra cima...
O que é isso? Alguém está gritando. Mais pés estão aparecendo em volta de mim...
Essa é a voz da Renata gritando! Por que você está gritando? Eu não consigo falar nada. Alguém me explique o que está acontecendo, por favor! Não consigo me mexer nem falar!
Alguém está me pegando pelo ombro e me virando pra cima. Meu Deus! O Sol está terrível hoje. Não consigo enxergar...
O rosto de Renata surge sobre mim, tapando a luz do Sol. Ela está em prantos, desesperada. Está gritando, mas não consigo entender o que diz.
Os meus olhos aos poucos estão se acostumando com a luz, agora reconheço a rua.
Os rostos estão tomando forma - muitas pessoas - porque elas estão me olhando?
Estou me lembrando agora, estávamos saindo do shopping e estávamos brigando. Não lembro o motivo, mas faz tempo que brigamos por tudo. Assim são os casais, não suporto muitas coisas nela, mas prefiro ficar com ela do que sozinho. Ela estava reclamando de alguma coisa quando ouvi um estouro abafado. Tudo ficou branco e eu acordei aqui, no chão.
As vozes estão ficando mais claras, mas são tantas que não consigo entender o que estão dizendo. Só consigo entender os gritos de Renata “Acorda! Acorda!” ela olha para os lados e grita “Chama uma ambulância caralho!” e depois chora. Aconteceu alguma coisa séria comigo.
Agora consigo sentir meus braços - apenas os braços - estão queimando no asfalto quente, mas não consigo movê-los. Estou começando a sentir uma dor terrível nas costas. Acho que é nas costas, não consigo saber exatamente onde é. Mas está doendo e ardendo muito agora. Meu braços estão ficando molhados. Consigo mover a cabeça um pouco para o lado e olhar de esguelha. Uma poça de sangue está se formando embaixo de mim. Agora estou sentindo uma dor mais forte. Por dentro, uma dor que vai das costas até a costela.
Meu Deus do céu, o que está acontecendo? Quero gritar e perguntar, mas não consigo mexer a boca. Todos estão parados, me olhando. Saiam daqui! Vão buscar ajuda! Filhos da puta! Alguma coisa terrível aconteceu comigo e vocês estão aí, parados! ISSO NÃO É UM SHOW!! ME AJUDEM!!
Meu Deus, me ajude... preciso de ar...
O calor agora está ficando insuportável, a Renata não está mais do meu lado, mas a escuto gritando com alguém, não entendo o que ela está falando...
Deve ter sido um tiro - só pode ser - uma bala perdida ou coisa assim.
Estou me sentindo pior agora... Uma sensação estranha... Fraqueza terrível, vontade de dormir...

Ah! Lembro quando eu saia com meu pai, eu era criança, passávamos por essa avenida e eu queria todos os bonecos de todos os heróis possíveis. Eles ficavam na vitrine das lojas e eu queria todos. Mas ele nunca me dava nenhum. Eu o odiava por isso, mas depois compreendi que ele não tinha dinheiro. Pai, você está aqui? Faz tempo que não vejo você e a mãe. Desculpe, desculpe. Prometo que vou à casa de vocês quando sair daqui. Prometo, dessa vez vou mesmo.

Renata me dá um tapa na cara. Grita pra eu ficar acordado, mas não agüento. Meu corpo está molhado e queimando no chão. Não consigo me mexer. As imagens estão ficando disformes de novo.
Algumas pessoas estão indo embora e outras estão aparecendo. Não sei se são homens ou mulheres, não sei o que elas querem. Algumas delas falam com Renata e tentam falar comigo, mas não consigo fazer nada. Estou cansado, vão embora...

Eu, Thiago e Tatiana éramos as únicas crianças da rua. Nossos pais não nos deixavam sair com medo dos carros e dos traficantes de órgãos. Sempre diziam que iam nos raptar para vender nossos órgãos. Mas mesmo assim, era tão legal, nunca mais falei com eles Thiago e Tatiana. Como será que eles estão? Onde será que eles estão...

Renata me dá outro tapa, ela está desesperada. Renata, como eu te amo, e só brigamos. Talvez não sejamos um casal ideal. Provavelmente deveríamos estar com outras pessoas, ou sozinhos. Mas passei tantos momentos bons com você. Você me ajudou a ser o que sou e, no entanto, brigamos sempre. Mas agora, essas lágrimas mostram que você gosta de mim, pelo menos um pouco. Gostaria de retribuir. Juro que gostaria, mas não consigo. Não consigo falar nada. Brigamos tanto. Nunca falei o quanto você foi importante pra mim. Queria falar agora, mas não consigo, não consigo...
Meu Deus, por que isso aconteceu?
Deus?
Acho que ele não me ouve, ou não quer ouvir. Ou simplesmente, não está.
Renata continua me balançando. Estou ouvindo os gritos dela, mas estão muitos distantes...

Lembro da época de escola, eu odiava, mas passei tantos momentos bons lá, o que será que aconteceram com aquelas pessoas? Sinto saudades agora.
Letícia, você foi a primeira garota que eu beijei, foi tão engraçado, e tão bom...
Você era uma boa amiga, mas um dia se mudou e não nos falamos mais. Queria saber como você está.

Renata continua gritando. Ouço sirenes agora, finalmente. Mas acho que é tarde. Perdão, eu não queria fazer você sofrer. Eu sei que já fiz antes, mas eu te amo, eu juro. Queria poder dizer isso pra você agora. Pra você e pra todos que fizeram parte da minha vida, mas é tarde demais...

Aqueles dias no bar com o pessoal eram tão legais, só falávamos besteira, todos eram amigos ali, naquele momento. Apenas naquele momento, mas eram amigos.

Acho que estou piorando.

A sirene está ficando mais alta, mas agora é tarde. Tarde demais. Me arrependo tanto agora... tantas coisas que deixei de fazer, de dizer...
Renata, queria poder abraçar você, beijar você, dizer que te amei. Dizer adeus.
Está tudo ficando cada vez mais disforme, não sinto meu corpo. Perdoe-me, por favor, perdoe. Não vou poder atender ao pedido de seus gritos. Ainda consigo escutá-los. Eles estão ficando cada vez mais distantes.

“Não vá embora, não vá!”

Eu sei que você vai sofrer. Algumas pessoas vão. Mas todos vão se acostumar. Sempre se acostumam. Logo serei uma lembrança distante, como um sonho. É assim que minha vida aparece pra mim agora. Um sonho distante.
A vida de vocês será igual sem mim. Talvez melhor. Gostaria de ter feito mais. Poderia te feito tantas coisas por vocês. Por vocês e por mim, mas não fiz nada. Não fiz nada.

Pai, mãe, eu ia visitar vocês. Eu juro. Letícia. Renata. Thiago. Tatiana. Perdão. Eu não fiz nada, nada... Agora é tarde demais...

Ainda escuto as sirenes. Ainda escuto...


“Não vá embora!! Não!”







tarde demais...

4 comentários:

  1. Intenso.

    O conto nos faz repensar certas situações e valores, mas de uma forma visceral, crua. Até que ponto valorizamos as relações que construímos, mesmo que vagamente?

    Seja sincero consigo mesmo: Em quem você pensaria, se estive ali no asfalto? Seja sincero, mas guarde pra você.

    Não tenho o menor interesse em saber, já tenho meu próprio asfalto.

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  2. Muito bom, realmente as pessoas só lembram daquelas q amam quando percebem q vão perdê-las e só discobrem uma grande oportunidade quando esta já passou.

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  3. Muito bom Metal! Só achei que faltou um pouco mais de ironia nessa estória.E cara, tem uma História em quadrinhos da Cripta do Terror que tem uma pegada semelhante.Abração!

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  4. Meu, nossa....sem palavras! Tocou fundo na alma!!
    Esse blog tah demais!!!

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