quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Vida de mortos.

Victor Marques.


Wanderlei estava sentado no sofá, não sabia que horas eram, nem o dia da semana, nem o mês. Sentado no sofá lembrando de como foi genial nos seus estudos, sempre o melhor, o mais rápido, mais inteligente, mais estudioso. Ainda tinha tempo para as mulheres, sempre praticara esportes, saíra com todas as mulheres que quis, o único de sua turma que, aos dezoito anos, ganhou um carro, bolsas de estudos ao terminar o colégio. Uma vida perfeita.
Agora estava estirado sobre um sofá podre, devendo incontáveis meses de aluguel, sozinho, contando moedas para comprar o cigarro de cada dia. Há dias não comia nada digno, até os ratos e baratas abandonavam aquele lar, que, apesar de lar não era doce, e sim, amaríssimo. As manchas de infiltração passaram do teto às paredes, tocando o chão. Os móveis e roupas só não fediam tanto quanto o dono porque foram vendidos a antiquários e brechós nos momentos de desespero.
Estender a mão em busca de uma moeda era humilhante demais para um gênio, um poliglota não precisava pedir esmolas, não se viam mendigos formados em universidades européias, e afinal, para Wanderlei, ainda havia saída.
Levantou-se com um cigarro entre os dedos amarelados, colocou-o entre os poucos dentes que restavam em sua boca, procurou uma caixa de fósforos atrás do sofá, entre os tacos apodrecidos, atrás da privada.Não, em algum lugar acharia um mísero fósforo. Começou a observar os transeuntes do seu lúgubre porão que chamava de casa. Era fim de tarde, por sorte uma guimba rolou para próximo de sua janela, ao pegá-la, se queimou e a deixou cair, uma luta até conseguir acender um mísero cigarro.
Esperou ficar escuro para ir até a casa do zelador do prédio para lhe pedir uma caixa de fósforos emprestada. Fazia tempo que não saía daquele lugar, quando o fez, só desejou voltar o mais rápido possível.
Ao tocar a campainha, foi atendido por uma menina de quinze anos. Ficou atônito, havia esquecido de como eram as mulheres, para ele, só existiam homens e ratos. Pediu uma caixa de fósforos e saiu rapidamente dali, como se fugisse da pobre menina.
Voltou para o sofá, acendeu uma vela, viu que as únicas coisas que restavam para ele, além da fome, era aquele sofá podre e um espelho antigo que não conseguira vender, roupas velhas espalhadas pelo chão e caixas de fósforo vazias.
Por um momento experimentou uma coisa que não sabia o que era há muito tempo, sentimentos. Sentiu ódio de si, depois pena. Havia esquecido como era o sexo, de uma refeição com mais uma pessoa, não sabia mais como era viver em sociedade, todo seu universo estava reduzido ao porão.
A imagem da filha do zelador não saía de sua cabeça, perturbava-o. Lembrou de algumas de suas namoradas, dos seus amigos, de sua família. Percebeu que todos estavam mortos. Todos estavam vivos, ele sim estava morto.
Rasgou alguns trapos e fez uma corda para se enforcar, mas se sentiu tão impotente, não tinha nenhuma cadeira para subir e pendurar a corda no teto. Até para a morte parecia incapaz.
Deixou sua forca dependurada no braço do sofá e dormiu. Sonhos? Wanderlei não sabia o que eram sonhos há anos, seu sono conturbado resumia-se à modorra.
Acordou depois de horas mal dormidas e permaneceu no sofá, passou a mão pelo seu corpo e notou que sua barba chegava ao peito, os raros fios de cabelos estavam enormes, quando tocou seu sexo, lembrou da filha do zelador.
Os dias, ou as unidades de tempo que pareciam dias, foram se arrastando, até que os fósforos acabaram de novo, juntamente com os cigarros. Precisava falar com o zelador novamente, porém, temia encontrar a menina.
Quando olhou pela janela e não viu mais claridade alguma, deixou o sofá e foi à casa do zelador. O homem atendeu com um maço de cigarros e a caixa de fósforos.
-Será que você poderia me emprestar uma cadeira?
-Claro que não, sente-se no sofá.
Aquelas palavras irritaram profundamente aquele homem. Homem? Será que um ser isolado da convivência, um indigente que morava num porão imundo, alguém que todos já davam por morto, poderia ser considerado um homem?
Acendeu um cigarro e lembrou que há dias não comia, estava a base de uma água escura que saía da torneira localizada do lado de fora do seu mundinho.
Sentiu raiva do zelador, aquele filho da puta poderia ter emprestado uma cadeira para que morresse dignamente. Um ódio animal o possuiu, era exatamente o que era, um animal.
No dia seguinte, durante a noite, foi até a casa do maldito lhe pedir uma faca. Caso ele não emprestasse, ele sairia à rua e se atiraria na frente do primeiro ônibus que passasse.
Infelizmente ele não estava, sua filha o atendeu, sentiu vergonha e saiu correndo. Ao entrar no vestíbulo, destruiu o espelho com um soco, muniu-se de um pedaço e resolveu fazer uma visita para a menina.
-Você vem comigo –disse Wanderlei encostando a ponta do caco no pescoço dela. –E traga uma cadeira.
Ao chegar no porão, a forca foi pendurada em uma haste de ferro que pendia do teto. Mas ainda era cedo para a morte. Antes disso, pretendia relembrar de como era o amor. O fez entre gritos e lágrimas. Quando os lamentos da garota começaram a perturbar, o enorme pedaço de espelho foi enterrado na sua garganta. Agora sim, um amor silencioso e frio.
Pensou em enforcá-la junto com ele, mas os panos podres não agüentariam. Ela que dormisse um pouco no sofá. Subiu na cadeira, acertou o nó em seu pescoço e saltou. Sua forca arrebentou, realmente, era incapaz até de se matar.

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